A história é contada com orgulho pelos técnicos da Haier, fabricante chinesa de eletrodomésticos com sede em Qingdao, província de Shandong, que se transformou em uma das líderes mundiais na produção de linha branca. Certo dia, o serviço de pós-venda da empresa recebeu reclamação de um cliente da área rural sobre uma máquina de lavar que quebrara. Ao efetuar o conserto, a empresa descobriu que o defeito era provocado por resíduos de uma espécie de lama, que ficava acumulada nas roupas durante o processo de lavagem de batata-doce.
A insatisfação do camponês foi o ponto de partida para que a empresa decidisse redesenhar a lavadora. A máquina foi então projetada para ter múltiplos usos e passou a ser vendida como equipamento não só para lavar roupa, mas também batata doce e amendoim. Com o tempo, a máquina ganhou novas versões.
O caso inusitado do camponês e da máquina de lavar, narrado a um grupo de acadêmicos brasileiros, é representativo de uma das principais facetas da inovação tecnológica das empresas chinesas: o processo cumulativo de desenvolvimento tecnológico.
A estratégia consiste em absorver tecnologia, assimilar o conhecimento adquirido via contratos de transferência tecnológica com empresas do mundo desenvolvido e aprimorá-lo. Nas universidades e centros de pesquisa, esse processo é chamado de inovação secundária, trabalho pelo qual uma empresa inova a partir de uma rota tecnológica conhecida.
Empresas chinesas não estão preocupadas só com o mercado interno, elas nascem pensando em operar no mundo
"Essa é uma característica das empresas chinesas nas últimas três décadas. Pegam tecnologias maduras e inovam no fim da curva, mas avançam. São pequenos passos que, somados à massa do mercado interno e ao baixo custo de mão de obra, representam vantagens. Mas as empresas chinesas não estão preocupadas só com o mercado interno, elas nascem pensando em operar no mundo como um todo, globalmente", diz Adriano Proença, professor do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A Haier aprendeu a fazer eletrodomésticos com a alemã Liebherr, que lhe transferiu tecnologia, diz Proença. Encerrado o contrato com a Liebherr, a Haier buscou melhorar produtos, ganhou escala e, em meados dos anos 90, passou a olhar para o mercado externo. Começou a exportar, inclusive para os EUA, onde atacou nichos de mercado, como o de refrigeradores para quartos de estudantes. Depois investiu em linha ampla de produtos. No caso dos refrigeradores, a Haier valeu-se do conhecimento de uma tecnologia madura para entrar no segmento de adegas climatizadas para vinhos.
Proença acredita que a China vai continuar a acumular desenvolvimento tecnológico para chegar aos mercados em segmentos nos quais possa combinar aprendizado tecnológico e propostas de valor de menor custo. Na alta tecnologia, os chineses tendem a continuar a investir maciçamente para ganhar posições, prevê Proença, que coordenou estudo que procurou demonstrar a dimensão tecnológica da pujança chinesa.
Intitulado "Tecnologia e Competitividade em Setores Básicos da Indústria Chinesa: Estudos de Caso", o trabalho foi realizado sob encomenda da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República. Proença e outros três professores da Coppe passaram dois meses e meio na China, entre o fim de 2010 e o começo de 2011. Visitaram 20 empresas, incluindo algumas companhias de alta tecnologia, de três setores selecionados pela SAE: eletroeletrônico, metal-mecânico e químico. Um lema comum a várias dessas empresas é: "Primeiro imitamos, depois aprendemos e, por fim, fazemos sozinhos", conta Proença.
O acesso às empresas consultadas foi facilitado pelo apoio da Universidade de Tsinghua, com a qual a Coppe mantém, desde 2009, o Centro China-Brasil de Mudança Climática e Tecnologias Inovadoras para Energia.
"Precisamos saber mais sobre a China, se conhece muito pouco no Brasil sobre esse país, como também não sabemos de maneira clara o que queremos da China", diz o ministro Wellington Moreira Franco, da SAE. Ele afirma que, além da análise feita pela Coppe, a secretaria encomendou outro estudo sobre China à Universidade de São Paulo (USP), ainda não divulgado. A ideia é que os dois estudos sejam submetidos a um grupo de trabalho ligado à comissão binacional de alto nível liderada pelos vice-presidentes da China e do Brasil, diz Moreira Franco. "Queremos fazer uma grande discussão sobre os trabalhos."
O ministro entende que a experiência chinesa em inovação tecnológica pode servir de inspiração para políticas públicas no Brasil. Na visão de Moreira Franco, a inovação tecnológica precisa, para se desenvolver, de um ambiente institucional que crie facilidades.
Um ponto importante é o envolvimento do governo federal, Estados e municípios, além de empresas, universidades e centros de pesquisa, em um jogo coletivo, à semelhança do que os chineses vêm fazendo. Nesse jogo, surge o papel coordenador do Estado. Um exemplo na China é o da energia eólica.
Os professores da Coppe visitaram duas empresas (Guodian e Tianwei, perto de Pequim), que desenvolveram projetos próprios de produção de turbinas eólicas a partir da sinalização do Estado, no ano 2000. Elas fizeram pesquisas sobre turbinas com o apoio de universidades - estimuladas a enviar doutorandos para o exterior - e acertaram processos de licenciamento de tecnologia. Hoje, as duas empresas têm em curso processos de inovação secundária associados à compra e assimilação de tecnologias em transição.
Sérgio Camargo, um dos professores da Coppe que participaram do trabalho, diz que na China há um comprometimento da sociedade com a inovação tecnológica. "Desenvolvimento tecnológico está na história da China há milênios", diz o professor. O engajamento de diferentes agentes sociais com o desenvolvimento tecnológico se relaciona com o processo de planejamento do governo. Camargo destaca o papel da Academia Chinesa de Ciências, que tem mais de cem centros de pesquisa focados em diferentes temas, como energia ou nanotecnologia. Na academia, há mais de 100 mil alunos de pós-graduação.
A qualificação de mão de obra também tem feito a diferença em favor da China. O trabalho da Coppe mostra que o número de profissionais formados em nível superior saltou de 800 mil, em 1997, para mais de 5 milhões em 2009, sendo que cerca de 2 milhões se graduaram em ciências exatas e em engenharia. Os professores dizem que os salários na China estão evoluindo e que, em determinados cargos, as empresas pagam de acordo com o mercado global.
Na avaliação de Camargo, as empresas chinesas se preocupam mais em dominar o mercado do que com o lucro. "A preocupação com o lucro existe, mas não vem em primeiro lugar. A trajetória que as empresas chinesas que visitamos perseguem é o domínio do mercado dentro de uma visão de mais longo prazo."
Além de inovar a partir de rotas tecnológicas existentes, as empresas chinesas analisadas também passaram a procurar, a partir da década passada, setores emergentes em que o jogo tecnológico está começando. Trata-se de investimento em alta tecnologia, área que também conta com apoio do governo chinês. Camargo cita o caso da tecnologia de iluminação LED. Entre o fim de 2008 e o começo de 2009, o governo chinês lançou um programa de incentivo à compra de máquinas de produção de LED.
"O governo decidiu custear a fundo perdido 50% do valor de cada máquina que fosse instalada na China", diz Camargo. Segundo ele, em 2008 a produção de LEDs na China foi inferior a 1% da produção mundial. Em 2011, a China produziu 14% dos LEDs do mundo e, em 2012, o país será o maior produtor mundial dessa tecnologia de iluminação, com 32% da produção mundial, prevê Camargo.
Para Proença, o coordenador do estudo, existe a possibilidade de aprender com o que deu certo da experiência chinesa: "Eles têm um processo de inovação guiado pelo mercado em que sempre procuram ocupar um espaço não descoberto. "O trabalho de reconceber, repensar e reinovar para ocupar um segmento não atendido é um processo de inovação. No Brasil, não sei quantas pessoas já atentaram para isso."
Veículo: Valor Econômico