Metamorfose de luxo

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Por que marcas populares em seus países de origem são vendidas como premium no Brasil.


O brasileiro consome cerca de 13 bilhões de litros de cerveja por ano. O volume é suficiente para encher mais de cinco mil piscinas olímpicas com a bebida. O tradicional apreciador do líquido feito de malte, cevada e lúpulo está também cada vez mais exigente. Tanto que o segmento de cervejas premium, formado pelas marcas mais caras e sofisticadas, é o que mais cresce atualmente e já representa cerca de 5% do mercado. A líder dessa área é a Budweiser, da Ambev. Isso mesmo, você não leu errado. A cerveja mais popular dos Estados Unidos foi posicionada por aqui como um produto premium. A Bud, como ela é chamada pelos americanos, só difere das cervejas consideradas mais comuns em um quesito: o preço.

Ele é 14% maior do que o da Skol, da própria Ambev, e o da Kaiser, da Heineken, segundo dados da empresa de pesquisas Nielsen – há dois anos, essa diferença era ainda maior: 30%. Mesmo assim, a Ambev, que detém quase 70% do mercado brasileiro de cerveja, resolveu posicioná-la como um produto superior, concorrendo com bebidas feitas artesanalmente, com matérias-primas de primeira qualidade e em baixíssima escala. Esse é apenas um exemplo de um fenômeno que acontece no Brasil há algum tempo e que já preocupa especialistas em construção de marcas: a banalização do conceito de produto premium ou de luxo.

Basta entrar em um shopping center ou percorrer as prateleiras dos supermercados para encontrar mercadorias populares no Exterior, mas que chegam ao País com ares de itens exclusivos, de qualidade superior e a preços, na maioria das vezes, exorbitantes. São os casos dos óculos Ray-Ban, dos produtos da rede varejista francesa Casino, do carro Smart e da loja de cosméticos Sephora. Todas essas marcas estão ligadas ao mercado de luxo brasileiro. Mas, na verdade, não possuem o cacife necessário para figurar nessa categoria, na visão de especialistas ouvidos por DINHEIRO. “Há uma vulgarização do termo luxo”, afirma Suzane Strehlau, autora do livro “Marketing de Luxo” e de outras obras sobre o setor.

“Isso acontece em parte pela falta de maturidade do mercado brasileiro e também por conta do oportunismo de algumas empresas.” É fácil entender por que muitas companhias buscam conquistar um espaço no mercado de luxo brasileiro. Em 2011, seu movimento chegou a R$ 18,5 bilhões no Brasil, com um crescimento de 18% em relação ao ano anterior, segundo estudo da consultoria americana GFK e da brasileira MCF. No mesmo ano, o varejo brasileiro teve crescimento de aproximadamente 6%. A previsão é de que o mercado de marcas premium fature R$ 20 bilhões em 2012, alta de 8%. A questão é que nem sempre essa é a melhor estratégia. A italiana Luxottica, dona da Ray-Ban, é uma das empresas que resolveram repensar esse modelo.

“Antes, um Ray-Ban custava quase R$ 600”, afirma Ennio Perrone, diretor de marketing da empresa. “O mesmo preço de um par de óculos Prada no Exterior.” Hoje, é possível encontrar modelos a partir de R$ 320. “É um produto de qualidade, mas não é de luxo”, diz o executivo. A margem de lucro caiu, é verdade. Mas a queda foi compensada pelo crescimento nas vendas. Algumas linhas, segundo Perrone, estão vendendo duas vezes mais. Mas nem todas as empresas pensam como a Luxottica. Posicionar uma marca como premium é uma forma rápida de impulsionar as vendas, uma vez que os consumidores se sentem atraídos pela expectativa de comprar uma mercadoria de qualidade superlativa.


Bianca Lellis, do Pão de Açúcar: "O Brasil tem espaço para produtos premium"


A questão é que, para ser considerado de luxo, a empresa precisa oferecer mais do que um bom produto aos consumidores. “O produto de luxo precisa ser exclusivo, estar ligado de alguma forma às artes e possuir um modo de produção diferenciado”, diz a escritora Suzane. Não é o caso do carro Smart, da Mercedes. O veículo de apenas dois lugares é considerado um carro de entrada na Europa, onde pode ser adquirido por aproximadamente € 9 mil (R$ 25 mil) em sua versão mais barata. Por aqui, seu modelo mais em conta custa R$ 52 mil, mas ele pode chegar a R$ 70 mil. “O Smart oferece mais do que a maioria dos automóveis”, afirma Glauci Toniato, gerente de marketing da Mercedes-Benz, ao justificar esse posicionamento.

O Smart vendido no Brasil, segundo Glauci, vem com itens de série disponíveis apenas nos modelos mais caros vendidos no País, como ar-condicionado, direção hidráulica e um sistema que o conecta ao smartphone. Há outras razões para elevar a categoria do Smart. Por ser importado, ele não consegue competir com carros populares. Logo, a empresa decidiu posicioná-lo como um produto exclusivo e mais caro. Mas o preço elevado induz o consumidor a relacionar a marca com o mercado de luxo. “Cria-se essa aura porque ele custa o dobro dos carros populares”, afirma Silvio Passareli, diretor do curso de gestão de luxo da Faap. “Mas não é o patamar a que ele pertence.”

Há também um componente cultural nessa equação, que torna mais fácil posicionar um produto como premium no Brasil do que em outros países. “Sofremos a síndrome do cachorro vira-lata”, afirma Clarisse Setyon, coordenadora de pós-graduação da ESPM, citando a célebre frase do escritor Nelson Rodrigues sobre o complexo de inferioridade dos brasileiros. “A lógica é que tudo que vem de fora é melhor.” Um exemplo de como as empresas podem tirar proveito desse “complexo” são os produtos do Casino, vendidos nos supermercados Pão de Açúcar. Na verdade, trata-se da marca própria da rede francesa de varejo.

Segundo Bianca Lellis, gerente de produto do Pão de Açúcar, a marca está relacionada a produtos gourmet no Brasil. “São os mesmos encontrados lá fora”, afirma Bianca. “O mercado brasileiro tem espaço para esse tipo de mercadoria.” Na França, no entanto, eles são itens de marca própria, vendidos a preços baixos. Para a professora Clarisse, da ESPM, a empresa adota essa postura por enxergar a oportunidade de conquistar um nicho de mercado. “Tem um público que busca o capricho de ter uma marca francesa na mesa”, afirma Clarisse. Bom, se fosse assim, qualquer vinho do país poderia ser tachado de premium – mas há muita bebida ruim sendo produzida por lá. Procurada, a Ambev não quis dar entrevista.


Versão brasileira


Não são apenas as marcas estrangeiras que posicionam produtos populares em seus países como premium em outras regiões do mundo. As empresas brasileiras também estão usando essa estratégia. As tradicionais sandálias Havaianas, que custam pouco mais de R$ 10 no Brasil, são vendidas na Europa por até € 30 (R$ 80). A Alpargatas, dona da marca, buscou o apoio de celebridades do mundo da moda para posicionar seu produto como premium lá fora. Na Inglaterra, cada par de uma série limitada do calçado chegou a custar o equivalente a R$ 500. A fabricante de calçados Grendene usou a mesma tática para a sandália Melissa.

Além de vendê-la a preços mais altos lá fora, a companhia escolheu designers famosos, como Karl Lagerfeld, diretor criativo da Casa Chanel, para assinar suas coleções. Outro produto bem popular que tentou posicionar-se como premium fora do Brasil é a cachaça Ypióca, adquirida no ano passado pelo grupo britânico Diageo, dono do uísque Johnnie Walker. Enquanto no País, uma garrafa da bebida custa R$ 21, nos Estados Unidos a mesma garrafa não sai por menos de US$ 30, o equivalente a R$ 60. “O Brasil está na moda e pode aproveitar isso”, diz Eduardo Tomiya, diretor da consultoria BrandAnalytics.

 

Veículo: Revista Isto É Dinheiro


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