Bicicletas, roupas, móveis e brinquedos, todos podem ser conseguidos através de trocas em redes na internet; prática já é bem comum na Europa e vem ganhando adeptos no Brasil
Por Murilo Roncolato
“Um dia olharemos para o século 20 e nos perguntaremos por que possuíamos tantas coisas”, escreveu a revista Time em 2011, apresentando seu argumento de por que o consumo colaborativo seria uma das ideias que mudariam o mundo. Anos depois, o conceito ganhou corpo, inclusive no Brasil, onde hoje há diversos serviços na internet e comunidades em redes sociais nas quais troca é palavra bem mais curtida do que consumo.
O conceito, segundo artigo da pesquisadora Rachel Botsman – autora do livro O que é meu é seu – publicado no mês passado, refere-se ao compartilhamento direto entre pessoas de itens ou serviços subutilizados. Para ela, trata-se da “reinvenção de práticas tradicionais através da tecnologia, como alugar, emprestar ou trocar, que passam a acontecer de maneiras e em uma escala inimagináveis antes da internet”.
Para o professor de economia da USP, Ricardo Abramovay, a popularidade da troca de bens em grupos no Facebook, como o Escambo (com mais de 20 mil usuários) ou Free Your Stuff (“liberte suas coisas”), se dá pela “possibilidade de cooperação social direta entre anônimos”.
FELIPE RAU/ESTADÃO
Na base do escambo, Ivon Ciuffa conseguiu cafeteira, câmeras e até um perfume trocando coisas que estavam ‘paradas’ em sua casa
No caso do Free Your Stuff, trata-se de uma rede de grupos de origem alemã que conta com uma série de regras, sendo a mais importante a de que tudo ali deve ser objeto de doação. Suas comunidades são locais, restritas normalmente a uma cidade (como Berlim, Porto Alegre ou Recife). A versão de São Paulo, por exemplo, tem apenas nove meses de vida e conta com 12 mil usuários.
Fernanda Magniccaro, administradora do grupo, diz que a proximidade ajuda no contato pessoal e na entrega e retirada de objetos. “O fluxo de entrada de novos membros é constante”, diz. “Trata-se de um novo olhar a respeito de antigos conceitos, usando a tecnologia para espalhar a informação e aproximar pessoas com os mesmos interesses.”
O assessor comercial, Ivon Ciuffa, de 37 anos, começou a trocar quando percebeu que tinha muita coisa “parada” em casa. Para ele, que já conseguiu cafeteira, perfume e mesa de escritório por meio dos grupos, as trocas acabam virando amizade. “Esse relacionamento permite que você conheça uma pessoa diferente, mas que tem o mesmo gosto que o seu.”
A artesã Pâmela Belliato, de 27 anos, é uma das que passaram a adotar a troca como prática para obter itens de que precisava. Por meio do grupo Free Your Stuff, já conseguiu uma bota, um cachecol e brinquedos para seu filho.
“Quando a gente descobre a possibilidade de conseguir aquilo que precisa sem ter que usar dinheiro e de uma maneira justa, outras perspectivas sobre valor e consumo se abrem”, diz. O comportamento, segundo ela, já influencia o ambiente em casa. “Meu filho de cinco anos, ao me pedir um brinquedo específico, disse ‘vê se tem para troca, mãe’.”
Há ainda quem vá além e, por meio do escambo, consiga bem mais do que pequenos itens de valor. A jornalista Gisele Neuls, por exemplo, quando se mudou para Porto Alegre optou por mobiliar o apartamento inteiro com objetos conseguidos através das redes. “Ganhei cama, guarda-roupa, televisão, duas poltronas, tapete, microondas, fruteira, toda a louça… tudo. Foi muito bacana porque ganhei coisa de gente que nem conhecia”, lembra.
A educadora Silvia Ribas, de 39 anos, é ainda mais entusiasta do “consumo a preço zero” e adora “escambar”, como diz. Para ela, o marido e as quatro filhas, já conseguiu som de carro, máquina de lavar, celular, videogame, máquina de algodão doce (que depois foi trocada por uma bicicleta), artigos de enxoval de bebê e até serviço de contadoria. “Se eu preciso de açúcar e café, eu vejo quem tem e troco por uma calça que alguém de casa não use mais. Eu tento fazer tudo assim. Minha vida hoje é escambo.”
A prática de mercado que prevê o compartilhamento por meio da tecnologia, no entanto, ainda não é amplamente conhecida pelos brasileiros. Estudo da empresa de pesquisa de mercado Market Analysis, de março, mostrou que 20% dos brasileiros sabiam do que se tratava economia compartilhada ou colaborativa (nos Estados Unidos, segundo a PricewaterhouseCoopers, esse número é 44%) e apenas 7% já haviam se envolvido em alguma transação do tipo nos 12 meses anteriores (contra 19% no caso dos EUA).
Troca ou venda de produtos usados havia sido a modalidade praticada por 73% deles, seguida do aluguel ou empréstimo de bens (15%) e aluguel de carro ou carona (13%).
Novos modelos
Sites que não contemplavam a possibilidade de trocar ou doar itens sem custo foram “forçados” a criar um canal diante da demanda de seus usuários. É o caso do Skoob, rede social voltada para discussão sobre livros. Após fundar a rede em 2009, Lindenberg Moreira percebeu que muitos dos usuários da plataforma marcavam encontros para trocar livros entre si. “Por que não criar um sistema para que eles possam fazer isso pelo próprio site?”, pensou.
A ideia amadureceu em 2013 e, hoje, o Skoob conta 482 mil livros trocados. “Temos cerca de 2 milhões de usuários. Desses, apenas 10% trocam, mas trocam muito. No ano passado, eram 6 mil livros trocados por mês. Nesse ano, essa média subiu para 9,5 mil”, diz.
Outro exemplo é o Classificados do portal Catraca Livre, originalmente uma página para a compra e venda de bens como camisetas e óculos. Com o site no ar, os fundadores decidiram experimentar inserir produtos gratuitos em uma seção chamada Loja Zero. “Foi um sucesso absurdo logo de cara. Na primeira divulgação, o site caiu por alguns segundos”, lembra Rafael Guandalini, fundador do Roupas SA, parceira do projeto.
A contar do seu início, há 10 meses, o Loja Zero tem uma média de 1000 “compras” por mês. “Hoje, meu armário tem um quarto das roupas que tinha há um ano. E vejo esse mesmo processo acontecendo com as pessoas que conhecem mais do consumo colaborativo e resolvem aderir.”
Veículo: Jornal O Estado de S.Paulo