Dados do Banco Central indicam que 3 milhões de pessoas vão regredir na pirâmide social do pais, ante perda de renda.
Aos 71 anos, a aposentada Lúcia Gercina da Conceição acorda todos os dias às 4h para trabalhar. Se atrasar um minuto, corre o risco de perder o ônibus que a transporta de Queimados, na Baixa Fluminense (RJ), até a casa de clientes nas quais faz faxina. Em seu corpo frágil, mas com impressionante disposição, ela sobe e desce escadas, se dependura das janelas, sem deixar qualquer resquício de sujeira.
Lúcia havia se programado para começar 2016 trabalhando apenas dois dias da semana. Com o dinheiro poupado nos últimos anos, acreditava que era chegada a hora de reduzir o ritmo e usufruir da aposentadoria. Do meio do ano em diante, planejava se desligaria de vez do compromisso das faxinas, mas a queda no poder de compra a obrigou a rever os planos.
“Toda a melhora de vida que tive nos últimos anos se foi. Juntando a minha aposentadoria com o dinheiro da faxina, a conta não fecha. Tive que cortar tudo, inclusive o plano de saúde”, relata Lúcia. O jeito, admite, será adiar o futuro de descanso. “Já falei com os patrões aos quais tinha avisado sobre a minha saída que continuarei trabalhando. Felizmente, eles mantiveram o contrato”, diz.
A aposentada é o retrato cruel da crise que adiou os sonhos de brasileiros. Pela primeira vez, em mais de uma década, muitos se sentem mais pobres, seja qual for o parâmetro de comparação. Entre 2000 e 2013, em reais, a renda per capita do país aumentou 35% acima da inflação. Em 2014, o rendimento começou a perder força. No ano passado, tombou quase 5%. A perspectiva é de que os brasileiros encerrem o segundo mandato de Dilma Rousseff, em 2018, com renda per capita de R$ 25,9 mil, menor que os R$ 26,9 mil de seis anos antes.
“A combinação de recessão com inflação alta e desemprego é dramática, sobretudo para os mais pobres”, diz Paulo Dantas da Costa, ex-presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon). Os dados mais conservadores do Banco Central indicam que ao menos 3 milhões de pessoas que migraram para a chamada classe média nos últimos anos voltarão para as camadas de menor renda, a D e a E. “A emergente classe média perdeu poder de compra, enfrenta o fantasma da inadimplência e começa a despencar degraus no estrato social”, acrescenta.
Nem mesmo o Bolsa Família, considerado a salvação de milhões de lares carentes, será capaz de impedir a perda de conquistas importantes. “O dinheiro encurtou demais”, afirma a aposentada Lucia da Conceição. “Está difícil para todo mundo”, ressalta.
Em 10 anos até 2014, o Brasil conseguiu reduzir a pobreza extrema. O Índice de Gini, que calcula a desigualdade social, passou de 0,535, em 2004, para 0,494 no ano passado — quanto mais próximo de 1 o indicador estiver, maior é o fosso que separa ricos e pobres. Contudo, lamentavelmente, os indicadores econômicos de 2015 indicam que, daqui para a frente, o país tende a andar para trás. O desemprego, que caminha para 10%, já é o maior da série histórica da Pnad Contínua, pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O rendimento médio real do trabalhador, de R$ 2.177, acumula queda de 9% nos últimos 12 meses, maior queda desde 2003.
Além de ganhar menos, o brasileiro passou a gastar mais por conta de uma inflação de quase 11% em 2015, taxa que não se via desde 2002. Com menor poder de compra, perde-se qualidade de vida e abre-se mão das coisas mais básicas quanto menor for o poder de compra. O Bolsa Família considera pessoas extremamente pobres aquelas com renda mensal de até R$ 77. Para efeito de comparação, a cesta básica mais barata do país, apurada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em Aracaju custa R$ 291,80. Em Brasília, o preço da ração mínima de alimentos é de R$ 377,24.
Mínimo insuficiente
Para Fernando Gaiger, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a crise da economia deve interromper a trajetória de redução da pobreza que o país experimentou na última década. “Existem algumas políticas de retaguarda, como o salário mínimo, que vem registrando correções acima da inflação. Mas a recessão afeta de forma diferente cada um dos estratos sociais. O impacto será maior nos grupos intermediários, que vinham ascendendo nos últimos anos e vão regredir daqui para a frente. O quadro é preocupante”, lamenta. O novo salário mínimo, que passou a vigorar na sexta-feira, foi reajustado em 11,6%, ao sair de R$ 788 para R$ 880 .
As pessoas que vivem na pobreza, explica o especialista, têm relações mais tênues com o mercado de trabalho e o aumento do desemprego, porque elas nunca deixaram a informalidade. “Alguns mecanismos protegem os muito pobres, isso evitará que muitos caiam na miséria total”, diz Gaiger. O problema deve se agravar, na opinião dele, se a inflação dos alimentos continuar alta. “Por enquanto, o churrasquinho da laje foi cortado de uma vez por semana para uma vez por mês nas classes intermediárias. Agora, se o preço da alimentação continuar subindo, a crise não poupará ninguém”, estima.
Paulo Dantas da Costa, do Conselho Federal de Economia (Cofecon), ressalta que a questão da pobreza no Brasil continua vergonhosa. “Nós tivemos um movimento muito positivo no governo Lula, que encantou todos os economistas, porque um contingente considerável de pessoas, de mais de 40 milhões, ascendeu socialmente. Mas esse movimento se esgotou”, sublinha.
Na avaliação do economista, o Bolsa Família ajudava os que estavam muito abaixo da linha da pobreza, mas perdeu força diante da inflação. “O fator primordial para os avanços sociais do passado foi o pleno emprego, justamente o que está recuando agora. O mais atingido pela crise hoje não é o detentor do programa social, é quem que tinha emprego na construção civil e perdeu as oportunidades”, afirma.
Desigualdade
Ainda que tenham representado grande avanço, as mudanças sociais da última década no Brasil não foram capazes de tirar a liderança do Brasil no desconfortável ranking de desigualdade social na América Latina. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), o país continua tendo o maior abismo entre ricos e pobres. A instituição mostra que subiu de 5,4% para 5,9% a proporção de brasileiros em situação de extrema pobreza entre 2012 e 2013. Esse índice estava em 10,7% em 2005.
Veículo: Jornal Estado de Minas - MG