Famílias perdem renda e têm que lidar com inflação em alta e medo do desemprego e da covid-19
O espaço para o consumo está se estreitando no Brasil e os gastos das famílias devem cair neste ano, voltando para os patamares de 2015 e 2016, quando o país enfrentava sua maior recessão. A avaliação é de analistas das principais consultorias de consumo do país.
Há indicadores desanimadores. O índice de desemprego é crescente, a inflação acelerou, a pandemia da covid-19 faz milhares de vítimas diariamente e leva a novos bloqueios de atividades, enquanto o auxílio emergencial não chega ao bolso de quem precisa.
Estudo da XP Investimentos, obtido pelo Valor, mostra que as vendas do varejo restrito, calculadas pelo IBGE, devem mostrar queda de 5,5% no primeiro trimestre em relação aos três últimos meses de 2020. Pelo conceito ampliado, que inclui automóveis e materiais de construção, a baixa deverá ser mais intensa, de 6,5%.
A dinâmica vai se refletir no consumo das famílias dentro do Produto Interno Bruto (PIB), que poderá ter quedas de 0,4% e 0,9% no primeiro e segundo trimestres, sempre em relação aos três meses anteriores, segundo a XP. Parte da influência negativa virá dos números de março, que podem mostrar queda de 10% do varejo ampliado ante fevereiro.
“As multinacionais estão preocupadas com as questões econômicas no Brasil, não só pela pandemia. Principalmente as mais expostas a [preços de] commodities”, diz Ricardo De Carli, sócio da Bain & Company.
Os especialistas ouvidos pelo Valor acreditam que não é de se esperar volumes maiores no segundo trimestre em comparação ao mesmo período do ano passado, quando houve aumento nas vendas de produtos de consumo básico. “Ao menos 55% das famílias brasileiras tiveram retração de renda e ela não se recupera no mesmo ritmo que a retomada das atividades acontece”, diz Domenico Tremaroli Filho, diretor da NielsenIQ.
Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o índice médio de desocupação para o ano de 2020 foi de 13,5%, o maior desde 2012. A inflação em 12 meses medida pelo IPCA está acumulada em 5,20%, no limiar do teto da meta, que é de 5,25%.
Nesse cenário, o consumidor está mais receoso com o futuro e menos disposto a gastar. Em março, o índice de confiança do consumidor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getulio Vargas (FGV) chegou a 68,2 pontos, o menor valor desde maio, mês em que os primeiros beneficiários do auxílio emergencial começaram a receber o pagamento. A medida aumentou a receita de mais de 68 milhões de pessoas em 2020.
“O consumidor está mais pessimista do que estava no passado. Alguns achavam que 2019 era bom e já não era, mas agora o espaço para o consumo está menor”, observa David Fiss, da consultoria Kantar. Segundo ele, o consumidor, que teve acesso a novas categorias ano passado por causa do “coronavoucher”, terá de manter as compras somente do básico. “A classe baixa já está abrindo mão de vários itens, como carne e certos itens de higiene pessoal.”
Pesquisa feita pela Kantar mostra que os gastos de quem recebeu o auxílio ficaram especialmente concentrados em itens essenciais, como os perecíveis e de higiene e limpeza, mas houve maior acesso a produtos de maior valor.
“Agora, a renda para o consumo discricionário da classe média para baixo está achatada. Alimentos, produtos de beleza, higiene e limpeza vão continuar, mas o restante cai. Consumo se ganha em massa, não se move com a minoritária classe A, que continua comprando”, diz Felipe Mendes, diretor da GfK Brasil. Para ele, esse quadro faz com que o investimento das empresas em marketing ganhe ainda mais importância para “manter a vontade do consumo”.
O consumidor está mais racional tanto nas classes de menor renda como na classe média. “Mais que marcas baratas, o consumidor vai buscar custo-benefício. A pessoa não pode errar na compra”, diz o diretor da NielsenIQ. Há maior procura por produtos de marca própria e embalagens econômicas.
Além disso, a intensificação da digitalização do consumo no ano passado também deixou o consumidor mais pragmático, diz o antropológo e sócio do instituto Consumoteca, Michel Alcoforado. Segundo ele, no consumo mais digital, não se tem a mesma fidelização à marca, vale mais o que tiver condição mais vantajosa.
Diante disso, alguma retomada deve ficar para os últimos meses de 2021 e começo de 2022. “Acredito que o último trimestre do ano vai ser pelo menos de estabilidade. Mas a gente vai ter de piorar para melhorar”, diz o presidente da auditoria KPMG no Brasil e na América do Sul, Charles Krieck.
Fonte: Valor Econômico