Autoridades de saúde e de defesa do consumidor nos Estados Unidos fecham o cerco contra a publicidade de alimentos funcionais -- e obrigam grandes empresas a alterar a embalagem de seus produtos
Desde que teve início a recente onda de alimentação saudável, há cerca de dez anos, fabricantes de biscoitos, balas, salgadinhos e todo tipo de guloseima vêm tentando encontrar formas de se livrar da pecha de vilões da indústria e da boa forma alheia. Primeiro, uma parcela deles partiu para a utilização de matérias-primas orgânicas. Depois, foi a vez dos ingredientes "naturais". Mas, para desespero dos departamentos de marketing, tais experiências invariavelmente resultavam em produtos sem charme -- ou gosto -- algum. Até que, em meados de 2000, a francesa Danone, um dos maiores grupos de alimentos do mundo, descobriu meio sem querer que um de seus iogurtes utilizava uma bactéria capaz de melhorar o trato digestivo -- sem comprometer o sabor do produto. Foi o que bastou para que se criasse uma febre em torno dos chamados alimentos funcionais. Da noite para o dia, produtos até então rechaçados por um grupo crescente de consumidores, como refrigerantes e margarinas, passaram a contar com aditivos como vitaminas, minerais e outros nutrientes. E -- mais importante -- ganharam o rótulo de saudáveis. Uma recente pesquisa realizada nos Estados Unidos com as 500 maiores empresas de alimentos do país mostrou que mais da metade delas passou a adicionar nutrientes a seus produtos neste ano apenas para incluí-los na categoria de funcionais.
Diante de todo esse frenesi, era de imaginar que reinasse entre companhias e consumidores um clima de otimismo e confiança com relação a esses produtos, certo? Pois o que está acontecendo é justamente o contrário. No início de novembro, a americana Kellogg's decidiu retirar do mercado um de seus maiores sucessos, o cereal Cocoa Krispies, vendido somente nos supermercados dos Estados Unidos. Enriquecido com antioxidantes, o produto trazia em sua embalagem a promessa de fortalecer o sistema imunológico das crianças. Mas, com a iminente disseminação do vírus H1N1 no país durante o inverno, a empresa achou por bem modificar o rótulo do produto -- sob pena de enfrentar na Justiça a fúria de pais que eventualmente se sentissem enganados por estar com seus filhos doentes em casa, a despeito das tigelas de Cocoa Krispies oferecidas aos pimpolhos.
A atitude da Kellogg's, embora compreensível, deve ser entendida como mais do que simples preocupação com o bem-estar dos consumidores ou com a reputação de sua marca. Desde o início do ano, as autoridades de saúde e defesa do consumidor dos Estados Unidos têm apertado o cerco contra os fabricantes de alimentos funcionais -- não tanto pela eficácia dos produtos, mas pelas promessas que seus rótulos carregam. Ao todo, mais de 40 companhias já foram acionadas judicialmente por esses órgãos, mais que o dobro do ano passado. A postura da Kellogg's seria, portanto, preventiva. "O que está em discussão não é a eficácia de uma determinada bactéria ou se a adição de uma vitamina à fórmula faz bem à saúde", afirma Steve Stallman, presidente da consultoria Stallman Marketing, uma das pioneiras na assessoria a lançamentos de alimentos funcionais nos Estados Unidos. "Mas se as empresas têm exagerado essas propriedades no rótulo de seus produtos para vender mais." Entre as companhias que já tiveram de prestar contas com relação às benesses prometidas em suas embalagens estão Coca-Cola, General Mills e Danone. O caso envolvendo o cereal Cheerios, da americana General Mills, ilustra bem essa nova situação. Em maio deste ano, a empresa foi obrigada pela FDA, a Anvisa americana, a modificar a embalagem do cereal depois que técnicos do órgão julgaram que as promessas de redução de colesterol contidas no rótulo -- todas "clinicamente comprovadas", segundo a empresa -- davam a entender que o produto tinha atuação semelhante à de um medicamento.
Em tese, não há nada de errado em combinar um alimento com nutrientes extras para torná-lo mais saudável. Na realidade, essa tem sido uma prática comum em quase todos os países do mundo desde o início do século passado como forma de prevenir doenças. Algumas dessas fórmulas, inclusive, são utilizadas até hoje, como a adição de vitamina D ao leite para evitar problemas nos ossos em crianças ou a inclusão de iodo ao sal de cozinha para precaver contra o bócio. O problema é quando esse expediente não passa de simples artifício para mascarar os males provocados por outras substâncias do produto, como açúcares e gorduras. "As empresas de alimentos entraram numa espécie de vale-tudo para parecer funcional", diz Julie Johnson, da consultoria HealthFocus, especializada em marketing de produtos saudáveis. "Mas os consumidores estão finalmente se dando conta de que é preciso examinar toda a tabela nutricional do produto, e não apenas o rótulo." Foi o que aconteceu com a água VitaminWater, da Coca-Cola. Em janeiro, a empresa foi notificada judicialmente por uma das mais importantes associações de defesa do consumidor nos Estados Unidos, o Center for Science in the Public Interest (algo como Centro para Ciências de Interesse Público), por indicar, no rótulo da garrafa, que o líquido continha todas as vitaminas necessárias à dieta de um adulto, além de se tratar de uma alternativa eficaz no combate a doenças crônicas e no fortalecimento do sistema imunológico. O que o fabricante esqueceu de mencionar, alegam os nutricionistas do CSPI, é que os 33 gramas de açúcar contidos em cada garrafinha colorida de VitaminWater podem promover obesidade, diabetes e outros problemas de saúde. "É quase como beber a própria Coca-Cola", diz um porta-voz da instituição.
Para tentar padronizar a formulação das embalagens de alimentos funcionais -- evitando, assim, atritos com a FDA e o consequente desgaste de imagem --, um grupo de 14 empresas americanas decidiu formar no final do ano passado uma espécie de coalizão, denominada Smart Choices (Escolhas Espertas, em português). O grupo, composto de companhias como Unilever, Kellogg's, Kraft e Pepsi, chegou a criar um selo para determinar que tipo de produto poderia ser considerado funcional -- mas acabou caindo em desgraça entre os americanos nos últimos meses. O endosso de guloseimas de valor nutricional duvidoso, como os cereais Froot Loops e Cocoa Krispies, ambos da Kellogg's, provocou uma enxurrada de reclamações por parte de consumidores. A FDA decidiu, então, investigar o assunto, mas antes mesmo de emitir seu parecer, no final de setembro, a coalizão havia sido desfeita. O burburinho foi tal que, nesse mesmo mês, a deputada americana Rosa DeLauro enviou uma carta à FDA exigindo uma investigação acerca do marketing em torno desses produtos. "O fato de esses cereais serem fabricados por um dos integrantes do grupo acaba com a credibilidade do sistema", afirma Walter Willett, diretor do departamento de nutrição da Universidade Harvard.
No Brasil, embora a regulamentação para esse tipo de publicidade seja bem mais rigorosa (toda empresa deve ter seu rótulo previamente aprovado pela Anvisa), questões semelhantes começam a acontecer. As mais recentes -- e polêmicas -- dizem respeito à Danone, não por acaso a empresa líder em alimentos funcionais no Brasil. Em junho de 2008, a Anvisa proibiu a veiculação dos comerciais do iogurte funcional Activia em todo o país, sob a alegação de que a propaganda dava a entender que o produto poderia ser utilizado como tratamento para todo tipo de disfunções intestinais. Um ano mais tarde, foi a vez de o Actimel ter a publicidade suspensa pelo órgão, sob a acusação de que a divulgação das propriedades funcionais do produto, desenvolvido para concorrer com a japonesa Yakult, não havia sido autorizada (a Danone acabou reformulando as campanhas de Activia e Actimel). E, por fim, no início de outubro, a empresa foi novamente alvo de críticas, desta vez por parte de sua principal concorrente, a Nestlé. Os executivos da empresa suíça têm alegado que a publicidade da água Bonafont, com baixo teor de sódio, dá a entender que o produto emagrece. Por via das dúvidas, a Danone mudou a campanha da água, deixando-a mais didática (oficialmente, a empresa nega que tenha tomado tal iniciativa por pressão da Nestlé). Prova de que, nessa indústria, para se livrar da pecha de vilão, não basta ser saudável -- é preciso ser, também, 100% transparente.
Veículo: Revista Exame