Recentemente, no julgamento do Recurso Especial nº 722.940 - MG, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça considerou que o aviso "contém glúten" nos produtos alimentícios e industrializados não é suficiente para informar aos consumidores sobre os danos que o produto causa aos portadores de doença celíaca ou enteropatia - uma intolerância permanente ao glúten que acomete indivíduos com predisposição genética - pelo que se faria necessária também a advertência neste sentido.
Limita a questão acerca da existência de lacuna na Lei Federal nº 10.674/2003 - que impõe que os alimentos comercializados informem sobre a presença de glúten - e da necessidade de se aplicar, em processo de integração, o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), o qual, tendo como princípio a vulnerabilidade do consumidor, prevê a necessidade de ampla informação, que deve incluir aspectos sobre os possíveis riscos que os produtos industrializados oferecem. Neste passo, independentemente da conclusão a que se chegue sobre o questionamento da existência ou não de lacuna na lei, deve haver uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico, pelo que a determinação contida no artigo 31 do CDC jamais pode ser olvidada.
Destarte, não há dúvidas acerca da indispensabilidade de se advertir o consumidor quando o produto causa malefícios à saúde em geral, como se verifica no caso dos medicamentos, cigarros e bebidas alcoólicas. Mas este, por certo, não é o caso do glúten, que não oferece qualquer risco ou perigo à saúde em geral, sendo, inclusive, recomendado pelos nutricionistas como parte integrante de uma dieta balanceada, só devendo ser evitado pelos portadores de doença celíaca.
Também conhecida como enteropatia por glúten, a doença celíaca se caracteriza por uma lesão na mucosa do intestino delgado, que resulta em má absorção de diversos nutrientes. Apesar do mecanismo de lesão não ser bem conhecido, é sabido que a remoção do glúten da dieta resulta na melhora dos sintomas e na cura das lesões intestinais na maior parte dos pacientes. Insta ressaltar que todos os portadores de doença celíaca, quando diagnosticados, recebem a devida orientação médica para que o glúten seja abolido de suas dietas. Muitas vezes o próprio consumidor sequer conhece a expressão "doença celíaca", mas tão somente tem conhecimento de que possui intolerância ao glúten, devendo evitá-lo.
É público e notório o fato de que existe um grande número de alimentos que deve ser evitado por grande parte da população, não porque oferece danos à saúde em geral, mas porque, por recomendação médica, deve ter sua ingestão reduzida ou mesmo evitada em razão de uma disfunção do próprio organismo do paciente. É o caso, por exemplo, do açúcar, que deve ser evitado pelos diabéticos; do sal, que deve ser consumido com cautela pelos hipertensos; do camarão, que deve ser abolido por aqueles que são alérgicos a iodo e etc.
Logo, verifica-se inviável, além de desnecessário, que todos os alimentos disponibilizados no mercado tragam advertências sobre os riscos que cada componente poderia oferecer a todos os eventuais consumidores portadores de todas as doenças, intolerâncias e alergias existentes. Tal imputação acarretaria afronta ao Princípio da Proporcionalidade, corolário do Princípio do Devido Processo Legal, em seu aspecto substantivo. Desta forma, parece-nos que a Lei 10.674/2003 supriu a necessidade de informação aos consumidores celíacos sobre os possíveis danos que sofreriam com a ingestão dos produtos em questão.
Entender de modo diverso levaria a uma conclusão que inviabilizaria o fornecimento de qualquer tipo de alimento. Isto porque todos os alimentos precisariam apresentar dezenas de informações sobre todos os seus componentes. Caso contrário, seria uma violação ao Princípio da Igualdade, consagrado no caput do artigo 5º da Constituição Federal, advertir os portadores de doença celíaca acerca dos "riscos" do consumo do glúten e deixar de advertir os diabéticos sobre os "riscos" do açúcar; aos hipertensos sobre os "riscos" do sal, etc.
Por fim, deve ser levado em conta o fato de que, ao contrário do que ocorre em alguns países, não há, na cultura brasileira, qualquer popularidade no tocante à doença celíaca, sendo certo que a menção a esta poderia gerar um aspecto negativo em relação aos produtos, causando a falsa premissa de que o simples consumo poderia fazer com que o consumidor desenvolvesse a doença. Tal advertência possivelmente seria interpretada da mesma forma como os avisos nas embalagens de cigarro que mencionam doenças como câncer e impotência sexual, dentre outras.
Em última análise, parece-nos que a referida decisão da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, além de violar os Princípios da Igualdade e Proporcionalidade, afronta também o princípio da livre circulação de bens, já que poderia afetar o consumo dos produtos que possuem glúten em sua composição, com conseqüências drásticas à economia do nosso País.
(HISASHI KATAOKA - SÓCIO E COORDENADOR DO SETOR DE JUIZADO ESPECIAL CÍVEL E RELAÇÕES DE CONSUMO DO ESCRITÓRIO SIQUEIRA CASTRO)
Veículo: Jornal do Commercio - RJ