Ao saborear um salgadinho chamado "palito picante", um consumidor, alérgico a farinha de trigo, teve uma reação e foi parar no pronto-socorro. Como o rótulo do produto não mencionava o componente, ele entrou com uma ação judicial contra a fabricante, uma microempresa de Araçatuba, no interior de São Paulo, e a loja que vendeu o produto. No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), obteve o direito de receber do fabricante uma indenização por danos morais no valor de 20 salários mínimos. O comerciante não chegou a ser responsabilizado.
O caso é um dos poucos que foram levados ao Judiciário. As raras condenações de fabricantes de alimentos que não discriminam a presença de componentes que causam alergia (alérgenos) nos rótulos de seus produtos são baseadas no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que prevê o direito à ampla informação. Hoje, só há uma norma específica sobre o assunto: a Lei nº 10.674, de 2003, que obriga as empresas a destacar a presença de glúten em alimentos.
"O tema ainda engatinha no Brasil, apesar de já estar regulamentado há mais de dez anos nos países desenvolvidos", diz a advogada Maria Cecilia Cury Chaddad, que defendeu sua tese de doutorado sobre o direito à informação nos rótulos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para ela, a ausência de leis específicas para a discriminação de alérgenos em rótulos colabora para o problema.
No caso do consumidor paulista, a decisão da 6ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP foi unânime. De acordo com o relator, desembargador José Joaquim dos Santos, o artigo 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor prevê expressamente que o fabricante tem o dever de fornecer ao consumidor "informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem".
No Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, os desembargadores também entenderam que o consumidor deve ser informado adequadamente. Eles condenaram uma indústria de alimentos a discriminar o tipo de óleo de soja usado em seus produtos. A ação tinha sido iniciada pela própria empresa para se prevenir de uma eventual fiscalização do Ministério da Agricultura. Para os magistrados, não há desproporcionalidade ao obrigar o fabricante a informar os componentes no rótulo, "pois visa preservar a saúde dos consumidores e muni-los de informações".
Em uma tentativa, porém, de solucionar parte do problema, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal de Sergipe contra a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O pedido é para que o órgão exija de fabricantes alertas sobre alterações em fórmulas de produtos, para evitar reações alérgicas. O caso foi analisado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Os desembargadores, porém, entenderam que a primeira instância deveria reexaminar o caso por ter extrapolado na sentença. A 2ª Vara Federal de Sergipe havia determinado que a Anvisa exigisse também a discriminação de alérgenos nas embalagens.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Anvisa informou que não comenta ações judiciais em trâmite. Segundo o órgão, as empresas de alimentos são obrigadas a listar em seus rótulos todos os ingredientes utilizados na preparação do produto. "A omissão de ingredientes é considerada infração sanitária, sendo que a fiscalização é feita pelas vigilâncias sanitárias locais", afirma na nota. Ainda acrescenta que o órgão " tem um diálogo constante com os órgãos de defesa do consumidor para garantir que denúncias sobre irregularidades sejam tratadas pela Anvisa".
Atualmente, as alergias alimentares afetam cerca de 8% das crianças e entre 3% e 5% dos adultos. Cerca de 90% deles têm reações a oito alérgenos: trigo, leite, soja, ovo, peixe, frutos do mar, oleaginosas e amendoim. No Congresso, porém, tramitam somente projetos de lei sobre a lactose.
Sem a discriminação devida nos rótulos, famílias como as da advogada Maria Cecilia e da consultora de alimentação infantil Nathália Ferreira Donato, cujos filhos têm alergia ao leite, acabam por recorrer a grupos de discussões nas redes sociais ou aos Serviços de Atendimento ao Consumidor (SACs) das companhias para obter informações sobre os produtos. Na prática, essa via tem sido mais usada que o Judiciário. " O nosso dia a dia é uma loucura. Vou ao supermercado e olho rótulo por rótulo. Muitas vezes, essas informações não são suficientes", diz Nathália.
Até produtos que já foram utilizados na alimentação da filha de Nathália têm que ser verificados. Isso porque muitas vezes o fabricante altera a fórmula e nem sempre informa isso com destaque nos rótulos. "Poucas empresas têm essa preocupação", afirma a consultora.
Para a advogada Flávia Lefèvre, do Lescher e Lefèvre Advogados Associados e consultora jurídica da Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste), as previsões do Código do Consumidor seriam suficientes para obrigar as empresas a discriminar os alérgenos em seus rótulos. O que faltaria é uma fiscalização mais firme da Anvisa.
Na tentativa de colaborar com essa fiscalização, Flávia destaca que a Proteste tem realizado diversos testes sobre a composição de alimentos e, quando constata irregularidades, encaminha à Anvisa, para que tome as providências cabíveis. "O objetivo do fornecedor deveria ser também a segurança do consumidor. Mas antes disso está o lucro e a vontade de vender."
Número de recalls no Brasil é pequeno
Ao contrário de outros países nos quais a prática é recorrente, o Brasil só registrou cinco casos de recall por alérgenos, de acordo com o site do Ministério da Justiça. Todos os casos envolvem o glúten, único com lei específica (nº 10.674, de 2003), que obriga fabricantes a discriminar o componente nos rótulos.
O número é pequeno em comparação com os de países desenvolvidos. De acordo com o blog eFoodAlert, da americana Phyllis Entis, autora do livro "Food Safety: Old Habits, New Perspectives", somente de 1º a 24 de março foram registrados 34 recalls ao redor do mundo por causa de alérgenos. Destes, sete nos Estados Unidos, 19 no Canadá e nove na Europa. Na Austrália, a Food Standards Agency relatou 211 casos entre 2002 a 2011.
No Brasil, o primeiro recall foi feito em 2004 e envolveu o Salgadinho Festa Snack, da Pepsico. No caso, segundo o Ministério da Justiça, a empresa teria imprimido, por engano, na frente da embalagem e junto à data de validade do produto a informação "não contém glúten". Foram retiradas do mercado 300 mil unidades do salgadinho. De acordo com o comunicado da empresa no Ministério da Justiça, os consumidores sensíveis ao glúten poderiam ter diarreia ao consumir o produto.
Em 2007, a Unilever fez um recall do Cornetto, também por afirmar que o produto não continha glúten. Um ano depois, foi a vez da Yoki fazer uma campanha para o Lanchinho Yokito. Em 2009, a Diageo retirou do mercado a cerveja Harp, importada.
Em 2010, a Ajinomoto do Brasil foi obrigada a fazer um recall do tempero Sazón. A campanha foi realizada depois de um fornecedor de fubá, um dos ingredientes de algumas versões da linha Sazón, não garantir mais a ausência de glúten, por haver possibilidade de contaminação cruzada.
Para a advogada Maria Cecilia Cury Chaddad, ainda são poucos os casos de recall porque o consumidor brasileiro não tem essa cultura de fiscalização. "Nos Estados Unidos, Europa e Canadá, o consumidor tem ciência de seus direitos, vai em busca do Judiciário, que, em curto prazo, condena a indústria a altos valores de indenização."
Veículo: Valor Econômico