Entraves e desentraves da nossa vitivinicultura

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Entre um vinho e outro, dediquei boa parte dessas duas últimas semanas a conversas e análises de fatos e números que pudessem me dar subsídios para saber a quantas anda o mercado de vinhos no Brasil.



No fim do ano passado, escrevi que 2012 foi um ano bastante tumultuado para o setor. Mal as empresas estavam se refazendo psicologicamente dos transtornos causados pela adoção do selo fiscal - na prática, no entanto, os importadores continuam tendo que se submeter à burocracia e aos custos que a medida impõe - e, contando com bons resultados no primeiro quadrimestre, por causa das promoções e da expectativa de crescimento da economia, o quadro mudou.

Uma série de fatos negativos se sucedeu, trazendo inquietação e queda nas vendas. Começou logo em março com o pedido de aplicação de medidas de salvaguarda para a indústria vitivinícola nacional; o pleito significava severas sanções aos vinhos importados - desde aumento 27% para 55% no imposto de importação até a imposição de cotas para cada país -, o que gerou muita discussão e um clima ruim de insegurança tanto para quem vende quanto para quem compra. A isso se somaram sinais de instabilidade na área econômica no Brasil (em parte reflexo da crise internacional), "arrastões" em restaurantes de São Paulo e preço relativo elevado da refeição fora de casa, entre outros, que afetaram significativamente um canal importante da cadeia vinícola.

Enfim, o consumo de vinho, que está associado a um ambiente sereno e positivo, sentiu o baque. O volume de importações ficou praticamente estável - subiu 1,7% -, supostamente em função de uma política de aumento (comedido) de estoques de algumas (poucas) importadoras como garantia a futuras restrições (caso contrário o resultado teria sido negativo). A rigor, levando em conta o mercado como um todo, muitas marcas sofreram descontinuidade na reposição no período.

O cenário econômico não mudou nesse inicio de ano, muito menos a situação dos restaurantes, que sentem o impacto adicional das novas regras e endurecimento da fiscalização da Lei Seca (que, a bem da verdade, afeta não apenas o consumo nos restaurantes). Essa é uma questão delicada, prefiro não entrar no mérito para não parecer que sou a favor de beber impunemente. O objetivo aqui é apenas inclui-la no leque de fatores que influenciaram a queda de consumo de vinho. Mas não se pode, indiscriminadamente, colocar tudo no mesmo cesto, ou, empregando uma expressão mais apropriada, testar a capacidade de dirigir - com responsabilidade - através de um bafômetro.

Apesar desses percalços, há razões para apostar num reaquecimento do mercado. Essa visão decorre, em especial, do acordo celebrado entre os produtores de vinhos nacionais e as associações de importadores, pondo fim ao processo da salvaguarda. A decisão, que teve importante participação - melhor dizer, "contou com o peso" - da Abras (Associação Brasileira de Supermercados), representa uma união de esforços para lutar por medidas que beneficiem ambas as partes, como a promoção de ações conjuntas visando aumentar o consumo per capita no país - a meta, ousada, é elevar de 1,9 para 2,5 litros por habitante por ano até 2016 - através de um bom programa de divulgação e esclarecimento sobre a função convivial e agregadora do vinho, seus atributos (únicos) à mesa e dos efeitos benéfícos que o consumo responsável traz para a saúde.

A propósito, em se tratando de saúde, na pauta consta também a negociação junto aos órgãos do governo de uma redução dos impostos que incidem sobre o vinho, algo que, racionalmente, não consigo entender. É coerente a cachaça pagar 17% de ICMS e o vinho 25%? É de se perguntar se estava enganado Thomas Jefferson, terceiro presidente e personagem importante da história americana, que dizia que consumir vinho era um hábito diário indispensável à saúde e defendia isenção de impostos para que o povo americano tivesse mais acesso a essa nobre bebida. E declarou que "nenhuma nação é ébria onde o vinho é barato; e não é sóbria a nação em que a falta de gosto pelo vinho faz com que destilados ardentes se tornem a bebida mais popular. Eis, na verdade, o único antídoto para o veneno do uísque". Lá era o uísque; aqui é outro destilado.

Cabe também, dentro do tema, ressaltar que, em meados de 2011, quando o governo de Portugal teve que tomar medidas para conter o déficit orçamentário, elevou o imposto sobre o valor agregado (o IVA, que corresponderia ao nosso ICMS), de um sem número de produtos e serviços - eletricidade, gás, refrigerantes, conservas e alimentos pré-preparados, espetáculos e manifestações desportivas, entre muitos outros -, mantendo em 13% a taxa para setores considerados cruciais, caso de produtos agrícolas, pescados e vinho. É incoerente?

Desafortunadamente, no Brasil não temos (também nunca tivemos) um presidente com a percepção de Thomas Jefferson (houve vários adeptos de outras bebidas) nem o vinho faz parte dos hábitos alimentares e da cultura do povo, como em Portugal. Por isso, a despeito do número de empregos diretos que promove e dos comprovados benefícios que o vinho traz para a saúde - além de, reforçando a declaração do digníssimo mandatário americano, combater o alcoolismo (tem louco pra tudo, mas podemos afirmar que, em princípio, não existe alcoólatra de vinho) -, o setor nunca teve força política. Nem ao menos para conseguir adesão de simpatizantes à causa para, no mínimo, colocar esses argumentos em discussão - houve tentativas e elas não deram resultado porque há medo de perder votos? -, dando espaço para determinadas facções religiosas se fortalecerem e fazerem a festa. É bem possível que o acordo e a contribuição da Abras, traga novas perspectivas.

Essa é a impressão que ficou da conversa com Marcio Milan, diretor de assuntos corporativos do grupo Pão de Açúcar e vice-presidente da Abras. Ele faz parte do Grupo de Trabalho da Cadeia do Vinho, comissão criada quando foi firmado o acordo de cooperação entre as associações e o setor vitivinícola com a função de coordenar e definir propostas objetivando ampliar o consumo de vinho no Brasil. Com lucidez e coerência, Milan descreveu algumas das medidas que estão sendo estudadas, todas obedecendo a um cronograma de implantação, tendo em vista que a primeira etapa vai até 2016. Com isso as tarefas foram divididas, ficando a Câmara Técnica com as questões tecnológicas, específicas da área produtiva, e o Comitê do Vinho, que tem, entre outras responsabilidades, a função de lidar com aspectos ligados ao comércio e à comercialização, contando para tanto com uma equipe de tributaristas de alto gabarito. Milan fez questão de ressaltar a harmonia e o clima de união existente entre os participantes.

Outro ponto importante colocado por Marcio Milan foi o da comunicação com o consumidor. Foi conseguindo saber o que pensa e precisa o consumidor e, a partir daí orienta-lo e supri-lo de informações, que cresceu o consumo de peixes e carne suína, um processo demorado - foram necessários quatro anos para consolidar o consumo de carne suína, mas deu resultado: o aumento foi de 4 quilos per capita. Para alcançar o mesmo com o vinho, o setor está terminando o escopo de uma pesquisa, abrangente e profunda, como nunca foi feito na área, que deverá dar subsídios para a elaboração de um plano de trabalho até 2016. Outra pesquisa deverá vir na sequência, levando em consideração o estágio atingido, permitindo planejar as etapas seguintes. Em estudo, igualmente, está a formatação do Fundo Nacional para Comunicação e Promoção do Vinho, que deverá definir de onde virão os recursos para a campanha de divulgação. Tirar do governo e abater na hora de recolher os impostos? Imposto compulsório? Nesse caso, além de implicar mais custos, o governo vai gerenciar? Essa é difícil de engolir.

Apesar da união e do entendimento entre as partes, dos esforços em elaborar planos objetivos e bem direcionados de trabalho, a medida mais eficiente, talvez a única, para atingir os objetivos do acordo é algo que baixe os preços dos vinhos. E isso envolve única e exclusivamente mexer na tributação. Ainda tem gente que acredita que vinho no Brasil é caro porque as margens dos importadores e dos produtores brasileiros são altas. Definitivamente, essa noção não tem nenhum fundamento. Trabalhar com vinho no Brasil é muito glamuroso, mas o retorno é muito baixo e nem de longe compensa bancar todos os custos inerentes ao negócio, assim como bancar os riscos da empreitada. Repetindo o que escrevi na coluna da semana passada, "para fazer uma pequena fortuna com vinho, começa-se tendo uma grande fortuna".

Há, em todo caso, uma promessa do governo federal de ajudar, feita quando foi encaminhado o acordo de cooperação. Na ocasião, inclusive, estava previsto que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic) acompanharia os trabalhos das comissões, prevendo para tanto, reuniões trimestrais. A próxima esta marcada para abril e nela o Grupo de Trabalho deverá mostrar o que está sendo feito e cobrar do governo partes que lhe cabem, entre elas redução nos impostos. Para crescer é preciso que venha algum sinal de incentivo. Talvez algo do que foi feito com o IPI dos carros e geladeiras, por exemplo, que, ainda que tenha alterado pouco o preço final dos produtos, proporcionou uma reviravolta positiva no mercado.

Outra frente está trabalhando junto aos governos estaduais, começando por São Paulo, tentando mexer na estrutura do ICMS e na questão da substituição tributária (ST), que onera sobremaneira o preço dos vinhos no varejo, prejudicando a todos - prejudica em particular, as pequenas empresas, que atuam pelo Simples, deixam de ser beneficiadas, passando a ser tributadas pela ST - quem pagava entre 1,5% e 4% de ICMS, passou a pagar mais de 20%, encarecendo o vinho e dificultando sua venda.

Vale como exemplo os dois ótimos exemplares nacionais hoje colocados em destaque, o espumante Don Bonifácio e o tinto Don Abel Rota 324, que ganharam o Top Ten da última Expovinis em suas categorias e começaram a ser distribuídos em São Paulo pelas importadoras Mercovino e Zahil, com preços ao consumidor na faixa de R$ 38 e R$ 80, respectivamente. Apesar de serem competitivos em termos de preço x qualidade, comparando com similares existentes no mercado, chegam a São Paulo onerados pela ST, posicionando-se num patamar de preço relativamente elevado. Poderiam vender bem mais.



Veículo: Valor Econômico


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