Acabou a exclusividade que algumas bandeiras tinham sobre as maquininhas de crédito. Bom para o cliente
A maquininha do cartão de crédito está prestes a sofrer uma transformação. Hoje em dia, ela busca ser monogâmica. Prefere fazer transações com os cartões de uma bandeira – Visa, digamos, ou Mastercard. Em breve, com a entrada em vigor de uma nova diretriz do Banco Central, a máquina deverá abraçar a poligamia. Aceitará os dois gigantes mencionados acima, e ainda outros setenta cartões que hoje operam no Brasil (sim, setenta, embora apenas dois ou três sejam de conhecimento geral). Mas o que, exatamente, o leitor tem a ver com isso? Primeiro, a certeza de que nas férias, por exemplo, aquela solitária maquininha cinzenta que repousa sobre o balcão da pousada ou do restaurante lhe será de serventia. Mas há também o impacto econômico – significativo – que essa pequena mudança tecnológica terá. Ela vai estimular a competição no setor de cartões de crédito. O tamanho da assim chamada "rede credenciada" deixará de ser uma vantagem de partida das grandes bandeiras. A tendência é que, para manter a clientela, elas reduzam um pouco as taxas de operação e administração que cobram dos comerciantes. A experiência internacional registra reduções de até 25% em países que adotaram um sistema semelhante. Se esse cenário se realizar no Brasil, de cada real gasto com cartão de crédito, 1 centavo deixará de ser pago em taxas. Parece irrisório, mas não é. Ao fim de 2009, o consumidor brasileiro deverá ter gasto cerca de 444 bilhões de reais com cartões. Levando em conta esse montante, a soma daqueles centavos representaria uma economia de mais de 3 bilhões de reais. É dinheiro que ficará no bolso de milhares de empresas, pequenas ou grandes, que aceitam pagamentos com "plástico". Algumas delas poderão repassar uma parte desse ganho ao consumidor. "Se as taxas que o cartão cobra de nós forem menores, poderemos dar descontos para ganhar terreno", diz Antônio Guimarães, vice-diretor financeiro da rede de varejo Wal-Mart.
O mercado brasileiro de cartões de crédito ganhou sua atual configuração no fim da década de 90. Até então, os próprios bancos, que disponibilizavam o dinheiro para o crédito, tratavam de instalar as máquinas nas lojas e executavam as transações. Nesse tempo, havia pelo menos uma dezena dessas redes com relevância no Brasil. Mas, como era trabalhoso – e caro – para os bancos mantê-las, eles se juntaram para formar empresas especializadas no negócio. Um grupo deu origem à VisaNet (atual Cielo), em 1995. Outro fez surgir a Redecard, em 1996. Houve então uma brutal concentração no mercado. A VisaNet passou a promover os cartões Visa e a Redecard, os cartões MasterCard. Hoje, essas duas bandeiras respondem sozinhas por nada menos que 90% das compras realizadas no Brasil. Foi assim que a Diners, a primeira bandeira de cartão a aportar no Brasil, em 1956, perdeu boa parte de sua relevância. Há ainda cartões que se destacam apenas regionalmente, a exemplo do OboéCard, que não extrapola as fronteiras do Nordeste. "O nível de concentração no Brasil salta aos olhos", diz o economista Claudio Felisoni, da Universidade de São Paulo. Nos Estados Unidos e em países da Europa, pelo menos quatro empresas despontam no mercado.
A nova diretriz do BC rompe com o principal obstáculo à disseminação de outras bandeiras no país. Hoje, 40% de 1,5 milhão de comerciantes que vendem a crédito no Brasil optam por Visa e MasterCard, dada sua abrangência, e deixam de aceitar outros cartões para não arcar com as taxas e o aluguel de mais uma máquina. É a perspectiva de mudança nessa lógica que já movimenta o mercado das maquininhas. A Cielo anunciou, para junho, o rompimento da exclusividade com a Visa. A Cielo e a Redecard começam a adaptar seus sistemas de modo que se tornem capazes de abarcar a operação de mais bandeiras (a Redecard já tinha capacidade técnica para operar dez bandeiras menores, mas agora terá de abranger 100% do universo brasileiro de cartões). Resume Roberto Medeiros, presidente da empresa: "Estamos nos preparando para um mercado mais competitivo". Uma segunda preocupação na iminência de mais concorrência é quanto ao corte de custos, crucial para que essas empresas consigam lidar com um cenário de margens mais estreitas. É por isso que Redecard e Hipercard, a terceira do setor, cogitam unir suas operações, ambas sob o controle do Itaú Unibanco. Novos competidores devem aparecer. Gigantes como o americano First Data, o líder mundial em processamento de transações financeiras, já traçam planos para prestar serviços tecnológicos essenciais para a operação das maquininhas. Estima-se que, até 2015, surja mais de uma dezena dessas empresas no país, que se somarão às cinco já existentes. Avalia o consultor Márcio Nakane: "Elas servirão de trampolim para o crescimento de bandeiras até então inexpressivas".
A experiência internacional mostra que, sempre que o mercado de cartões se torna mais competitivo, surgem benefícios concretos para as pessoas. Entre os mais comuns, há suspensão de anuidade, prazos mais dilatados para quitar dívidas e juros menores. Também o preço nas lojas costuma cair. Um estudo com base em dados da União Europeia mostra que, nos países europeus em que há mais competição entre bandeiras, as taxas cobradas pela venda a crédito são até 40% menores. O efeito é bom para a economia como um todo. Num cenário assim, as pessoas vão às compras com mais vigor. No ano passado, 21% dos gastos dos brasileiros foram efetuados no cartão – um crescimento de 20% em relação a 2007. É um avanço, mas ainda insuficiente para equiparar o Brasil a países como os Estados Unidos, em que o cartão representa 40% de todo o consumo. Lá, as taxas cobradas pelas operadoras de cartão são até a metade das brasileiras. E a maquininha poligâmica, quem diria, pode dar sua contribuição para que se chegue lá.
Veículo: Revista Veja