A tendência de se consumir cada vez mais vinhos jovens - é uma faceta da era moderna, vivenciamos uma sociedade imediatista - tem provocado distorções na avaliação deles. Alguns vinhos necessitam mais tempo para se exprimir. Nesse ínterim eles podem ser preteridos em favor de outros eventualmente inferiores. O fato ocorre com certa freqüência em degustações onde vários vinhos são provados em série, advindo a frase "o vinho cresceu no copo", que provoca mudança nas preferências.
Ser volúvel, diga-se de passagem, nesse caso é louvável, sinaliza que esta se provando com atenção. Isso de fato aconteceu recentemente: na semana passada numa degustação de bordeaux 2005, promovida pela Grand Cru de São Paulo, o Angelus, um Saint Emilion Premier Grand Cru Classe "B", começou um tanto tímido e fechado, abrindo-se depois a ponto de se tornar a amostra predileta da maioria dos presentes.
A rigor, tintos jovens e robustos precisam de mais contato com oxigênio, o que pode ser propiciado durante o período em que ele estiver no copo. Pelo mesmo motivo é que se recomenda decantá-los previamente, o que tem a vantagem de a bebida poder ser servida na temperatura correta (mantendo o decanter em ambiente refrigerado) e, vamos admitir, não correndo o risco de se ficar agoniado tendo a taça diante de si, aguardando o momento ideal para desfrutá-la. Os efeitos positivos da decantação se estendem também, porque não, para brancos com potencial de envelhecimento. Grandes borgonhas, hermitages e bons chenin blanc do Vale do Loire (vouvrays e savennières), são alguns exemplos.
Cabe notar que o formato do recipiente tem influência no resultado, uma vez que quanto maior seu diâmetro, maior a superfície de contato da bebida com o ar, havendo, assim mais troca. A propósito, só essa observação já descarta a possibilidade de trazer algum proveito apenas abrir a garrafa com antecedência - falsos sommeliers, para mostrar conhecimento, adoram propor fazê-lo. Mas não é só um problema de área de contato. A simples transferência do vinho para o decanter faz com que todo o líquido "respire".
No que diz respeito à parte aromática, a interação com o ar é duplamente benéfica. Por um lado libera eventuais odores indesejáveis - sulfurosos, ou os de redução, desenvolvidos pela carência de oxigênio quando o vinho fica "preso" na garrafa -, mas também aromas menos voláteis, mais ricos e característicos dos melhores vinhos.
A questão é quanto tempo antes o vinho deve ser decantado. Na verdade, os fenômenos que ocorrem variam de vinho para vinho, são complexos e em grande parte inexplicáveis. Nos tintos, têm a ver, em primeira análise, com os taninos que, entrando em contato com o oxigênio, se polimerizam e ficam, digamos, mais macios, domesticados. É, aliás, a razão pela qual bons vinhos, após a fase de fermentação, férteis em tanino, permanecem períodos variáveis (depende do vinho) em barris de carvalho, madeira relativamente porosa que permite a passagem gradual e parcimoniosa de ar. Assim, vinhos mais tânicos pedem não só estágio mais prolongado em madeira, como também mais tempo de decanter.
Na falta de informações e conhecimento prévio do comportamento do vinho é bom não correr riscos. É prudente servir mais cedo do que tarde e acompanhar sua evolução no copo. Melhorar com o tempo, significa que a aeração lhe é benéfica e poderá ser ampliada numa próxima vez. Foi o que aconteceu com os citados Bordeaux 2005, que haviam sido decantados duas horas antes e demonstraram que necessitavam mais.
Vinhos com idade, por sua vez, devem ser decantados momentos antes de serem servidos. E aí, em se tratando de tintos, nem deixá-los evoluir na taça é conveniente. Além de mais frágeis, não suportando longa exposição ao ar, a transferência para outro vasilhame se faz necessária para separar o vinho dos sedimentos que se formam na garrafa com o passar dos anos. A bem da verdade, essa é a origem da palavra decantar. De fato, no processo de evolução de um tinto a bebida vai perdendo cor, passando do violáceo para tons mais leves (com nuances alaranjadas), e taninos, que chegam a ser agressivos no início e vão se suavizando ao longo do tempo. Não é por mero acaso que, compostas de pigmentos corantes e taninos, as partículas formadas no fundo da garrafa tenham cor escura e transmitam um gosto amargo e adstringente, alterando significativamente o gosto do vinho.
Ter sucesso na tarefa de deixar passar apenas o líquido, ficando todos os sedimentos retidos na garrafa original, depende de certo treino e alguns cuidados. O primeiro deles é manusear a garrafa com carinho para não agitar as partículas que demoraram tanto tempo para se depositar. Em seguida, a decantação deve ser feita com o auxílio de um ponto luminoso, uma vela, para iluminar o gargalo da garrafa e determinar o momento exato de interromper processo - instante em que a borra está em vias de passar para a jarra.
Como o recipiente para o qual se transfere o vinho, seja para que ele respire ou para liberá-lo dos sedimentos, é conhecido como decanter, é excesso de preciosismo diferenciar as duas operações em decantação e aeração. A distinção deve ser na hora de executá-las: numa se utiliza a vela na outra não. De resto, a não ser vinhos para beber rápido e esquecer rápido, todos os demais deveriam ser decantados. Se não pela dúvida sobre o ganho em fazê-lo, mas pela cerimônia que os bons merecem. Afinal, segundo o Aurélio, decantar é também celebrar, exaltar suas qualidades.
Veículo: Valor Econômico