Vinhos: O solo glacial e a necessária mineralidade

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É natural a tendência de se eleger qual país, Chile ou Argentina, produz melhores vinhos. Afinal, juntos, representam ao redor de 62% do que é importado pelo Brasil - o Chile tem cerca de 34% do mercado brasileiro e a Argentina 28%. A comparação, no entanto, deve ser levada mais para o gosto pessoal, e isso é soberano, do que para uma ótica mais técnica. Na realidade, embora sejam vizinhos os dois países têm diferenças marcantes de geografia, clima e solo, o que acarreta vinhos com características próprias e distintas. Apontar qual o melhor é o mesmo que dizer que laranja é melhor que abacaxi, ou vice-versa. 

 

Uma das principais causas dessas diferenças é a Cordilheira dos Andes que bloqueia a influência do Oceano Pacífico nos vinhedos argentinos, enquanto do lado chileno ela é fator determinante. Não só no que diz respeito a estilo, mas também em termos de vocação: nos vinhos brancos o Chile leva nítida vantagem. 

 

É bem verdade que desde que os produtores argentinos começaram a explorar a altitude, implantando seus vinhedos em locais mais altos, começaram a sair chardonnays e sauvignons de padrão melhor. É possível que da Patagônia, onde novos projetos estão sendo desenvolvidos -- na Província de Neuquén, por exemplo -, mais vinhos brancos interessantes cheguem ao mercado. É pouco, em todo caso, comparado com a diversidade de terroirs que o Chile tem. 

 

Não faz muito tempo, porém, que os chilenos se deram conta disso. Na prática foi no início dos anos 90 com a "descoberta" de Casablanca, vale situado a noroeste de Santiago e próximo do mar - ao contrário das então soberanas zonas vinícolas de Maipo, Rapel, e Maule. Além da latitude, há influências do oceano ou da Cordilheira dos Andes, dependendo de quão próxima de cada um deles a área estiver. Casablanca, no caso, recebe a brisa fresca que vem das águas frias do Pacífico. A temperatura média mais baixa, aliada à grande amplitude térmica diária, abriu caminho para brancos elegantes e de qualidade, padrão até então inusitado no país. O sucesso de Casablanca encorajou projetos em áreas que ninguém imaginaria alguns anos antes. 

 

Antes mesmo da hoje consagrada Leyda/SanAntonio e mais recentemente Limari, foi em direção ao sul que os produtores chilenos se deslocaram em busca de condições apropriadas para elaborar vinhos brancos. Os resultados apareceram rapidamente e vieram de Traiguén, a região vinícola mais austral do Chile, distante 650 km de Santiago. É de lá o SoldeSol, chardonnay que em 2000, sua primeira safra comercializada, foi eleito o melhor vinho branco do país pelo Descorchados, principal guia especializado do país. 

 

O mentor do SoldeSol foi Felipe de Solminihac, co-proprietário da Viña Aquitania no Vale de Maipo, ao lado de três franceses, todos pesos pesados no cenário vinícola mundial: Paul Pontallier, diretor técnico e responsável pelo celebrado Château Margaux, Bruno Pratts, ex-proprietário do reverenciado Cos d´Estournel, ambos rótulos de primeira grandeza de Bordeaux, e Ghislain de Montgolfier, presidente da renomada Maison de Champagne Bollinger. 

 

Localizada numa zona privilegiada de Maipo, aos pés da Cordilheira, o foco da Aquitania sempre foi tintos, de onde, aliás, sai hoje o Lazuli, um vinho que, mantendo um perfil chileno, carrega o caráter refinado tão preconizado pelos europeus. O 2004, segundo Lazuli lançado, e em vias de chegar ao Brasil pela Zahil (www.zahil.com.br), ganhou ainda mais concentração e complexidade. 

 

Solminihac, chileno que também é enólogo e dá consultoria para vinícolas importantes, iniciou a experiência num pequeno trecho do vasto terreno de seu sogro - mais de 1000 hectares, cultivados com trigo, milho, cevada e outros cereais - após uma viagem à Nova Zelândia onde conheceu particularidades do cultivo de vinhas em climas frios. 

 

A partir dessa base e contando com as condições naturais extremamente favoráveis de seu país, Felipe não precisou de grandes firulas tecnológicas para alcançar expressivas recompensas em prazo tão curto. Ele "simplesmente" retirou mudas de algumas videiras que davam bons frutos em outros lugares e plantou-as diretamente no solo; sem necessidade de enxerto já que o Chile é praticamente o único país livre da terrível filoxera, a praga que dizimou vinhedos mundo afora na segunda metade do século XIX e que continua ainda incomodando. 

 

Num primeiro momento, em 1995, Felipe Solminihac plantou cinco hectares de chardonnay. A primeira colheita, quatro anos depois foi vendida integralmente à Veramonte, vinícola de porte instalada em Casablanca. Em 2000, mais seguro do que tinha nas mãos e percebendo a qualidade dos cachos resolveu trazê-los para a sede em Maipo e vinificá-los. Segundo o próprio Solminihac, Pontallier de início não se entusiasmou, dizendo ser estranho bordaleses produzindo chardonnay, perguntando se não seria melhor continuar vendendo a colheita para a Veramonte, que se mostrara muito interessada (diante da qualidade dos cachos). 

 

Prensados os cachos e colocados em barricas de diversas capacidades - 228 litros, 350 litros e 600 litros, para que a madeira não marcasse o vinho em demasia - já no começo da fermentação Pontallier e Bruno Pratts abraçaram a idéia, prevendo que o vinho iria ser interessante. 

 

As condições de Traiguén são bem peculiares: o solo, da época glacial, tem pedra decomposta, que confere mineralidade ao vinho. Em termos de clima, os dois primeiros meses do ano são de relativo calor e é apenas no final de fevereiro que a uva começa a mudar de cor. A partir daí, as temperaturas baixam, chegando em março e abril a 16/18 graus centigrados, prolongando o período de maturação. Apesar da incidência de chuva e umidade, seus efeitos são bem minorados por força da ação benéfica de ventos que vem do Pacífico, garantindo bom estado sanitário dos cachos. 

 

A colheita é transportada durante a noite até a bodega em Maipo, sendo logo prensada. Após um breve período de decantação o mosto é colocado nas barricas. O início da fermentação se dá após a adição de leveduras selecionadas, tarefa que, por superstição, cabe a um grupo de mulheres - inclusive a mulher de Solminihac - seguindo a crença que são elas que criam vida. Pelo sim pelo não, o SoldeSol se tornou referência de chardonnay no Chile, encabeçando a cada ano a lista dos melhores do país segundo o Descorchados. 

 

Felipe de Solminihac esteve no Brasil na semana passada, apresentando seus vinhos em Florianópolis, Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo. Trouxe consigo alguns poucos conjuntos de seu top branco, formados pela série completa de safras produzidas até agora, ou seja, de 2000 até 2006. Eu já havia participado dessa mesma prova na sede da vinícola, quando estive no Chile em agosto último, junto com Patricio Tapia, autor do Descorchados, Hector Riquelme, melhor sommelier do Chile e colaborador do guia, e Fabricio Portelli, melhor crítico de vinhos da Argentina na atualidade, editor das revistas En Primeur e El Conocedor. 

 

Já me referi outras vezes sobre os encantos de degustações que focam várias safras do mesmo vinho, pela possibilidade de mergulhar nos segredos de cada terroir e ver como ele reflete o que se passou climaticamente em cada ano. Quando os rótulos são relativamente recentes essas provas permitem observar como as vinícolas evoluíram no período, o que é fundamental para se avaliar a seriedade do projeto e ver o que se pode esperar dele no futuro. Afinal, para um vinho que pretende entrar para o seleto grupo dos "grandes", é preciso mostrar consistência, ter um passado para contar. 

 

É o que encontrei na vertical de SoldeSol, com direito a conhecer detalhes do que se passou em cada colheita e trocar idéias com meus parceiros de degustação. Dois aspectos ficaram claros: o clima em Traiguén não é tão estável quanto em outras regiões chilenas. As variações são mais significativas, mas permanece a tese que as ímpares são as melhores. A segunda constatação é a evidente evolução qualitativa do vinho, mesmo diante de safras menos favoráveis. Um ótimo sinal. Fazer vinho bom de vez em quando não é mérito nenhum. 

 

A prova teve início com o primeiro SoldeSol colocado no mercado, o 2000. Nessa sua estréia, compreensivelmente, a fermentação se deu em barris de carvalho 100% novos, o que marcou um pouco o vinho. Hoje a madeira está mais integrada, embora ainda se sinta sua presença. O toque exótico fica por conta da untuosidade em boca, justificada por Felipe pela presença, ainda que pequena, de botrytis no vinhedo. O frescor agradável que se mantém é fruto dos 60% do vinho que não passaram por fermentação malolática. 

 

As boas condições climáticas em 2001 permitiram que as uvas atingissem bons índices de maturação com bom estado sanitário. O vinho apresenta belas notas minerais, frescor e elegância, mostrando-se vivo e menos evoluído que o anterior. 

 

As dificuldades impostas pelo clima em 2002, com muita chuva, quase levaram Solminihac a decidir não soltar vinho naquele ano. Um trabalho de seleção esmerado conseguiu reverter um pouco a situação e ensejar exemplares bem honestos. Os aromas de abacaxi compotado e um frescor no seu limite inferior, denotam os apuros encontrados, mas dignamente contornados. 

 

Tudo voltou ao normal em 2003, safra em que as etapas transcorreram favoravelmente, o que resultou num belo, fresco, e bem estruturado SoldeSol.. As circunstâncias se inverteram no ano seguinte, e a chuva forte durante a colheita prejudicou o trabalho; o vinho se ressente disso. Falta-lhe acidez e extrato. 

 

Nada como um ano após o outro. Um verão seco e quente, que se prolongou até o outono, proporcionou uvas perfeitas. Daí o 2005 atingir alto padrão de qualidade, com todos seus ricos componentes em perfeito equilíbrio. A madeira bem dosada colabora para evidenciar sua riqueza e mineralidade. 

 

Em 2006, parece que o clima resolveu quebrar a regra de que anos pares são inferiores. Como conseqüência saiu um vinho com boa estrutura, com boa sensação de frutas cítricas frescas, como abacaxi, sem deixar de lado seu importante aspecto mineral, característica presente nos melhores brancos. A porcentagem pequena de madeira nova, 20%, também ressalta esse atributo. Por ora ainda está meio fechado, sendo temerário fazer qualquer comparação com o 2005. Não faz grande diferença. São dois grandes chardonnays, que devem servir de exemplo a outros produtores, principalmente do Novo Mundo. 

 

Veículo: Valor Econômico


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