No Chile, cerveja é o novo vinho

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Nos últimos três anos, foram criadas no país 300 cervejarias artesanais e o consumo anual da bebida aumentou 100%

 

A cifra é modesta e a quantidade, pequena, mas a cerveja artesanal produzida no sul do Chile é boa e vai longe. Nos três últimos anos, o país viu surgir 300 empresas no setor e o consumo anual da bebida cresceu 100%. O boom cervejeiro faz muitos sonharem que o produto possa um dia trilhar o mesmo caminho do vinho e do salmão - duas marcas registradas do Chile que hoje somam quase US$ 4 bilhões anuais em exportações.

 

O Estado percorreu 300 quilômetros no sul do Chile - passando por Temuco, Freire, Villarica, Pucón e Valdivia -, onde estão concentradas oito das cervejarias artesanais mais tradicionais do país. Em meio à paisagem invernal, com montanhas nevadas e bosques de araucárias, escondem-se pequenas joias cervejeiras, que prezam mais pela receita original que pela conquista de novos pontos de distribuição.

 

O principal segredo desse súbito sucesso é a água, abundante e pura na região. O outro trunfo é a quantidade de descendentes de imigrantes europeus presentes no sul do Chile, cujas famílias produziam cerveja de qualidade em seus países de origem.

 

Juan Carlos Amand de Mendieta é filho de pai belga e mãe chilena. Em 2006, ele e a mulher - María Elena Schacht Fenner, descendente de mestres cervejeiros alemães - fundaram a Crater, uma pequena cervejaria localizada aos pés do vulcão Villarica, 800 quilômetros ao sul de Santiago. O casal furou um poço artesanal no quintal, montou uma fabriqueta, um pequeno restaurante alemão e quatro cabanas para alugar durante a temporada, de frente para um dos vulcões mais ativos do Chile, com quase 3 mil metros de altura.

 

"Colocamos o carro na frente dos bois, a paixão na frente dos negócios. E deu certo. Não éramos comerciantes, mas amantes de cerveja. E esse é o perfil de quem se dedica a esse ramo", conta Amand de Mendieta.

 

Hoje, a Crater tem capacidade para produzir 12 mil litros de cerveja por mês - há quem classifique como "artesanais" apenas os que produzem menos de 25 mil litros por lote de material fermentado. Mas os fatores determinantes são, na verdade, o tempo de maturação da cerveja - que passa de 30 dias para as artesanais, mas dura apenas 5 para industriais - e a pureza dos ingredientes, já que as artesanais são fiéis ao Edito da Cerveja, criado em 1516 na Alemanha, quando se estabeleceu que cerveja, mesmo, só aquela feita com boa água, lúpulo, cevada e levedura. Nada de conservantes.

 

Prova do sucesso das pequenas cervejarias é que, só no último ano, a Crater cresceu 50%, contratou oito empregados e celebrou o primeiro acordo com uma grande rede de supermercados, distribuindo a cerveja de norte a sul do país. Outras centenas de empresas familiares do setor sonham em trilhar o mesmo caminho.

 

O potencial dos pequenos fez com que o programa governamental de incentivo à exportação, o ProChile, criasse no ano passado um departamento dedicado exclusivamente à cerveja, com 50 escritórios espalhados pelo país.

 

"Os artesanais estão aparecendo no mercado, com novos sabores e outras propostas, que vão além do oferecido pelos produtores tradicionais. Temos um clima e uma água que favorecem isso", diz Masako Noriwa, responsável pelo departamento de cervejas no ProChile. "A oferta artesanal ainda não é suficiente para satisfazer a demanda internacional, mas prevemos que essa produção dobre dentro de dois anos. Já temos pelo menos 15 produtores artesanais com perfil para bons exportadores."

 

A beleza da paisagem do sul do Chile sugere a criação de uma "rota da cerveja", assim como existe a "rota do vinho", velha conhecida dos brasileiros, que todos os anos viajam para ver de perto as famosas vinícolas chilenas do Valle Central.

 

Termômetro. Um ponto de peregrinação dos amantes da cerveja artesanal é, hoje, a fábrica da Kunstmann, na cidade de Valdivia. Essa empresa de médio porte, fundada há 20 anos por descendentes de colonos alemães, é considerada, junto com a cervejaria Austral, da Patagônia, uma das mais bem sucedidas do ramo, além de um termômetro do boom vivido hoje no país.

 

A Kunstmann acaba de celebrar um acordo com uma distribuidora brasileira de cervejas para estabelecer pontos de venda em São Paulo. A parceria deve começar a funcionar este ano, com o envio de 2 mil caixas com 24 garrafas de 330 mililitros cada uma. "Nós começamos como todas essas outras cervejarias artesanais, mas 20 anos atrás. Hoje, somos um ícone no setor, um modelo a ser seguido", diz a diretora de marketing da empresa, Ana Jaramillo. A cerveja já é vendida no México, Argentina, Colômbia, Nova Zelândia, Austrália e Coreia do Sul.

 

Um dos méritos comerciais da Kunstmann foi ter celebrado, há nove anos, um acordo com a CCU (Companhia Cervejarias Unidas), gigante do setor com participação da Heineken e ações negociadas na Bolsa de Nova York. O trato prevê que a Kunstmann use a logística de distribuição da CCU e, ao mesmo tempo, deixa nas mãos da família o poder sobre a fabricação da cerveja.

 

Embora tenha passado a ser fabricada em grande escala, continua fiel à receita original, usando a mesma água de 20 anos atrás, encontrada num poço de 40 metros de profundidade na cidade de Valdivia.

 

O acordo entre a Kunstmann e a CCU é visto por muitos empresários como um modelo capaz de desatar um dos maiores nós da produção artesanal hoje: a distribuição.

 

Puristas. Mas a equação entre artesanato legítimo e comércio competitivo já começa a provocar uma certa tensão para os mais puristas. "Não vou alterar a receita ou o processo de fabricação da cerveja em nome de fazer um produto mais durável, mais fácil de se exportado", diz Amand de Medieta, da Crater. "Também decidi que nunca colocarei mais de 45% das minhas vendas nas mãos de grandes redes de supermercado. Isso é uma armadilha."

 

Para puristas como ele, o contrato entre a Kunstmann e a CCU pode estar no limite do tolerável para uma empresa que se diz artesanal. Muitos apreciadores da bebida e pequenos produtores chilenos veem esses contratos como uma tentativa dos grandes grupos econômicos de simplesmente engolir os artesanais, reduzindo a concorrência.

 

Tanto é assim que a pureza ou não da Kunstmann, após seu acordo com a CCU, virou o assunto preferido nas mesas de bar do sul do Chile, uma verdadeira lenda urbana. Para os entendidos, a receita mudou, embora os donos da empresa digam o contrário. Mas o simples fato de a receita da Kunstmann ter virado assunto no Chile, já é, por si só, um sinal de que as coisas mudaram e o vinho já não reina tão absoluto no horizonte gastronômico, cultural e econômico do país.

 

Veículo: O Estado de S.Paulo


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