Pesquisadores da Unesp unem bagaço da laranja à levedura descartada na fabricação da cerveja para criar bebida que, envelhecida em tonéis de carvalho, ganha em sabor e cor
O que resulta da soma do bagaço da laranja com a levedura descartada da fabricação de cerveja? Nas mãos dos pesquisadoras da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), o que mais parece lixo se transforma em uma saborosa bebida similar à aguardente. Parece até uma fórmula mágica. Os estudiosos do Centro de Pesquisa de Desenvolvimento da Qualidade de Cachaça patentearam a bebida e agora estudam a possibilidade de exportá-la.
As pesquisas tiveram início há quase uma década, quando um ex-aluno do professor João Bosco Faria decidiu fazer um mestrado. À época empregado na indústria de suco de laranja da região de Araraquara, interior paulista, o patrão definiu que para liberá-lo ele deveria voltar sua pesquisa para a laranja. Como o orientador já era coordenador do centro da cachaça da universidade, eles decidiram unir o útil ao agradável. E de cara tiveram uma boa notícia: o bagaço da fruta antes de ser descartado continha liquor (líquido extraído do bagaço da fruta) suficiente para a produção da bebida. As empresas do ramo logo disponibilizaram a matéria-prima. Até porque, o descarte era um custo a mais, uma vez que não bastava para isso jogá-lo fora devido à alta concentração de compostos orgânicos. Era preciso que fosse espremido novamente para se transformar em ração animal.
O emprego da levedura usada no processo de fabricação da cachaça foi testado. Não deu muito certo. Os pesquisadores decidiram então substituir a levedura pela usada na fabricação da cerveja. A fabricante holandesa Heinekken tem planta na região e poderia fornecer as leveduras descartadas, o que lhe era bastante vantajoso. Isso porque mais de 80% das leveduras que sobram do processo de fermentação da cerveja ainda estão vivas e, de acordo com a legislação, para evitar contaminação do solo, a empresa é obrigada a reduzir esse número a 15% antes de cedê-lo para servir de adubo para produtores rurais, o que significa alto custo de manejo. Em vez disso, elas seriam então reaproveitadas.
COMO O UÍSQUE
Depois de usadas em cinco processos de fermentação, por continuar com função, podem ser usadas por mais três vezes sem alterar o gosto. Acima disso os resultados são mais lentos. Outra vantagem que tornaria o processo mais barato era o fato de o pH do bagaço da laranja estar bem próximo do ideal, enquanto no caso da cana seria preciso adicionar ácido sulfúrico para corrigir a acidez do líquido.
Os estudiosos decidiram, no entanto, aprimorar o sabor. Para isso, a escolha foi por envelhecer a bebida em processo semelhante ao adotado para uísque e cachaça. Em tonéis de carvalho trazidos da Europa com uísque europeu, a aguardente será armazenada por dois anos, ganhando outros contornos de aroma. O envelhecimento se dá em um ambiente com temperatura controlada e restrição de luz solar para proteção da madeira e evitar possíveis vazamentos. Essa etapa é a responsável pela coloração dourada da bebida. Quanto mais longo for o período no tonel, mais sabor amadeirado recebe e status.
No entanto, paralelamente ao desenvolvimento da bebida foram feitas as chamadas análises sensoriais. Especialistas fazem degustação de amostras a cada etapa do envelhecimento para identificar características do sabor. E uma das afirmações é que depois de sete anos o gosto excessivo de madeira não agrada tanto. Enquanto no laboratório eram feitos mais estudos para aprimoramento, eram registradas duas patentes – uma referente à obtenção da aguardente a partir do líquor da laranja e outra do uso da levedura no processo. Uma terceira também pode ser aprovada: refere-se ao alambique de cobre revestido com aço inox. O aparelho foi criado para evitar a contaminação da bebida pelo cobre que se desprende da parede durante o processo de destilação. Isso fazia com que a bebida sofresse alterações de aroma e sabor.
ESCALA INDUSTRIAL
O próximo passo é criar condições para que a bebida seja produzida em escala industrial. “Já temos todo o know-how. Está todo mundo querendo beber a ‘cachaça de laranja’”, afirma o professor. Mas vale ressaltar que a bebida não pode ser classificada como cachaça, pois pelas regras do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a cachaça tem como matéria-prima a cana-de-açúcar, sendo assim tachada de aguardente de laranja.
A aprovação permite que a produção extrapole as dependências do laboratório. A ideia é que inicialmente seja usada a usina-piloto da universidade. Empresários interessados também poderão pagar os direitos autorais para usar a patente. O valor é convertido para a Unesp. Fala-se até mesmo na exportação da bebida. “Temos uma bebida diferente. E o que é melhor: ligada à indústria da laranja. Inclusive, segundo estudo de viabilidade econômica feito por outro aluno, se todo o liquor disponível for usado, a produção de cachaça brasileira dobra.
Antes disso, são feitos ajustes na bebida de forma a atender todos os requisitos, como, o controle da quantidade de carbamato de etila (uretano), entre outros. A substância é cancerígena e dependendo do nível de incidência pode ter efeitos nocivos para a saúde da pessoa.
Aguardente ou cachaça?
Há quem pense que aguardente é sinônimo de cachaça. Mas, na verdade, a compreensão é errada. Aguardente é a denominação de qualquer bebida obtida por meio da fermentação de vegetais, enquanto a cachaça é exclusivamente feita tendo a cana-de-açúcar como matéria-prima. No mais, precisa ter graduação alcoólica entre 38% e 48%. Ou seja, toda cachaça é uma aguardente, mas nem toda aguardente é uma cachaça.
Veículo: Estado de Minas