Empresários locais investem na produção de vinho

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A ideia de investir em vinho remete, em geral, à decisão de montar uma adega. Cuidadosamente planejada e recheada, de preferência com rótulos que tenham potencial de envelhecimento. Além do prazer de degustá-los no futuro, compartilhando bons momentos com os amigos, existe a expectativa de construir um patrimônio com uma taxa de retorno compatível com outras opções de mercado - o chamado "custo de oportunidade".

Contudo, seja pela escassez de boas alternativas ou pela paixão e glamour associados ao mundo do vinho, o fato é que se observa uma mudança nesse senso comum: alguns brasileiros começam a investir em vinhedos, adquirindo propriedades, sozinhos ou em parceria, no Brasil e no exterior.

Existem vários exemplos de aventuras do gênero no Centro-Sul e Sudeste do Brasil, algumas de pequenas proporções, como as de empresários que resolveram, quase como brincadeira, cultivar videiras em suas fazendas, mesmo cientes que, a despeito do capricho na implantação, o clima desfavorável não permitia fantasiar com grandes vinhos.

Era esse, ao menos, meu pensamento, quando há cerca de dez anos, consultado informalmente por uma amiga que trabalhava na Secretaria do Planejamento do Estado de São Paulo sobre a viabilidade de implantar um projeto de fomento à vitivinicultura no interior paulista, me mostrei bastante cético, frustrando suas tão bem intencionadas expectativas.

Embora eu tenha também aventado sobre a necessidade de estudos mais avançados sobre rentabilidade e operacionalização, comparando com outras culturas praticadas nessas regiões - café tem comprador e se vende em sacas com facilidade, enquanto vinho envolve vinificação (instalações e expertise para tanto) e estrutura de comercialização -, o entrave era, a meu ver, a impossibilidade de se atingir um bom padrão de qualidade.

Não valia a pena perder tempo e recursos para produzir um "são roque", ainda que fossem implantados vinhedos de uvas viníferas (o "verdadeiro" vinho de São Roque é elaborado com uvas de mesa).

Trata-se, sabidamente, de um problema climático. Vivemos em um país tropical, que se caracteriza pela alta incidência de chuvas durante o verão - ao contrário das zonas de clima temperado, onde estão consagradas regiões vinícolas mundo afora, caso, entre outras, de Chile, Argentina, Califórnia, Austrália e Europa -, período de maturação das uvas, exatamente quando elas precisam de sol e tempo seco.

A situação muda quando o assunto é o Vale do São Francisco, mas que, por razões opostas, também está longe de ser adequado à vitivinicultura: estiagem, noites quentes e inexistência de estações do ano bem definidas aceleram o sistema vegetativo da parreira, induzindo a duas ou mais colheitas anuais, o que (também) não favorece a obtenção de boa matéria-prima.

Por coincidência ou não, na mesma época em que me posicionei descrente quanto à produção de vinhos no interior de São Paulo, o especialista em viticultura com PhD na Universidade de Bordeaux, Murillo de Albuquerque Regina, acreditou que seria possível desenvolver uma técnica para alterar o ciclo de produção da videira e viabilizar a produção de vinhos de qualidade em certas zonas da Região Sudeste.

Sua aposta foi fazer a colheita das uvas no inverno, explorando as condições climáticas da estação: tempo seco, dias ensolarados e noites frescas. A videira, no entanto, teimosamente insiste em florescer dentro do seu ritmo, o que, sem intervenções, implicaria a vindima acontecer no verão. Com frutos duas vezes por ano é praticamente inviável alcançar um patamar mais alto de qualidade.

A partir de ensaios conduzidos numa parceria entre a Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) e uma propriedade privada no sul do Estado, o pesquisador mineiro encontrou o caminho: a dupla poda. Na prática, após a colheita normal das uvas no inverno, é feita uma poda clássica, deixando na parreira apenas os dois cordões principais. O ciclo, que resultaria numa vindima de verão, é interrompido em janeiro com uma poda drástica, o que dá início a um novo período produtivo, desta vez completo com a fase de maturação coincidindo com os meses propícios para um adequado desenvolvimento do cachos.

São, de fato, condições particularmente interessantes para a produção de vinhos de qualidade, e, de certa forma, específicas daquela região central do Brasil (é preciso ter inverno, mas "não tão inverno assim"), conforme destacou o emérito professor Alain Carbonneau, fundador do Institut des Hautes Etudes de la Vigne et du Vin, em Montpellier, na França, no documento em que relata suas impressões sobre a visita a algumas fazendas vitivinícolas da zona, logo depois de participar do Simpósio Internacional realizado em Petrolina, em maio de 2010.

Relevando uma pequena imprecisão - "em torno de 15º de latitude sul (é, na verdade, por volta do paralelo 22) e entre 1.000 e 1.400 metros de altitude -, o Doutor Carbonneau declara que "com efeito, o Nordeste do Brasil possui, sem dúvida, condições algo quentes em demasia, notadamente à noite, e o Sul do país, condições um pouco úmidas demais que impedem um controle (preciso) da data da colheita. Em contrapartida, em Minas Gerais, com uma poda no verão - janeiro - e uma colheita no inverno (julho-agosto), é possível controlar a maturação das uvas em condições ensolaradas e frescas. A vinha e a uva se desenvolvem na contra estação, a madurez se obtém ao cabo de uma evolução rápida do clima em direção a uma baixa nas temperaturas e à insolação".

O responsável por esta nova frente vinícola brasileira, a "vinhos de inverno com dupla poda", Murillo Regina é sócio com dois viticultores franceses numa empresa especializada n a criação e fornecimento de mudas de videiras certificadas e continua como pesquisador da Epamig, estando por trás de vários projetos do gênero na região - alguns já em produção, caso da Estrada Real, cujos primeiros rótulos, com o nome "Primeira Estrada", começaram a ser comercializados. Na falta de instalações - é a política da vinícola -, os vinhos foram elaborados na Fazenda Guaspari, situada no município paulista de Espirito Santo do Pinhal, na divisa com o sul de Minas Gerais.

Em agosto último, estive lá em plena colheita. Os vinhedos, a cantina de vinificação e o cuidado em todo o processo me impressionaram. E, ponto importante, os vinhos também. Isso não ocorreu só comigo: Jean-Philippe Delmas, diretor técnico do celebrado Château Haut-Brion, saiu de lá com a mesma impressão. O projeto vitivinícola da Fazenda Guaspari é impecável! Sua concepção, implementação e gestão são absolutamente profissionais. Agrega os atributos de um empresário - ousadia, criatividade, foco - com sua paixão pelo vinho.

Quando a propriedade foi comprada, em 2001, o objetivo não era partir para a produção de vinhos. A ideia surgiu por acaso dois anos depois, quando a família se encantou com as mudas de videiras plantadas ao lado da casa principal, como parte de um projeto de paisagismo. Não eram nada de especial - castas variadas - e haviam sido arrematadas da Estação Experimental que a Epamig mantinha e tinha se desinteressado de acompanhar. Na mesma época tiveram contato com o pesquisador Murillo Regina, que deu consultoria na concepção e nos trabalhos para implantação dos vinhedos.

Os atuais 50 hectares, 12 dos quais em produção (as primeiras parreiras foram plantadas em 2006), estão divididos em sete parcelas, estabelecidas a partir de extensos estudos de solo - foram seis meses de trabalhos de sondagem - e analise das diferentes insolações para definir as variedades de uvas mais adequadas a cada uma. A atenção à parte vitícola pode ser avaliada pelo porte da equipe responsável: dois enólogos de campo com experiência internacional em tempo integral, com a supervisão, ainda, de um consultor português que vem a cada dois meses.

No que se refere à vinificação não é muito diferente e c onta com profissionais que passaram por estágios fora do país. O posto de enólogo-sênior, que tem a função definir as ações e coordenar o grupo, é ocupado, desde 2011, pelo experiente americano Gustavo Gonzalez, que depois de trabalhar por dez anos com Robert Mondavi e fazer parte do time da Tenuta dell'Ornellaia, da Toscana, comanda a Mira Winery, no Napa Valley.

A equipe não funciona só na teoria. Minha visita coincidiu com a colheita de uma das parcelas de syrah e tudo estava bem afinado. As uvas, com uma primeira triagem no pé, são cuidadosamente transportadas em caixas plásticas para a cantina, onde passam por uma dupla mesa de seleção, seguindo de lá, por gravidade, para as cubas de inox. Num piso mais abaixo ficam as salas climatizadas, que abrigam as barricas de carvalho francês - personalizadas com o logo da vinícola.

Foi o próprio Gustavo que orientou a degustação dos 13 vinhos provados durante minha visita. Começamos com três safras de sauvignon blanc, 2010, 2011 e 2012, apresentando boa tipicidade e um crescendo de qualidade. Particularmente o último, que teve parte fermentada em barris de 600 litros, mostrou frescor e boa textura na boca. No mesmo nível estava o chardonnay 2012, vinificado em barrica com "bâtonnage", com bom equilíbrio entre acidez e álcool (acidez 6,0 g/l, pH 3,31 e 13,7% de graduação alcóolica).

No campo dos tintos, a série começou com duas safras, 2010 e 2011, de umas das primeiras parcelas plantadas, a "Vista da Mata", com nítida evolução do ponto de vista qualitativo, o que mostra a importância de ter um bom profissional no comando - Gustavo e seu imediato na área de vinificação, o brasileiro Juan Galardo, entraram neste ano.

O painel mais interessante foi o de syrah, com três das cinco parcelas representadas, duas safras de cada uma: Vista da Mata 2009 e 2010; Vista do Chá 2011 e 2012; e Vista da Serra, também de 2011 e 2012. Denotando um estilo que lembra um Rhône francês, nenhum destoou. Destaque especial para o Vista da Serra 2011, o melhor dos 13 vinhos provados (teve ainda um correto meio-doce Muskat de Petit Grains 2011). Sem mostrar qualquer sinal de madeira ou de álcool - tem 15% -, apresenta um belo conjunto, com bom balanço entre taninos macios, frescor e corpo.

Os vinhos, que levam o nome Guaspari estarão no mercado em 2014 com três rótulos tintos (dois syrahs e um pinot noir) e um branco sauvignon blanc.

Na semana que vem, projetos vitivinícolas de brasileiros (também por adoção) fora do Brasil.



Veículo: Valor Econômico


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