Carolina Mandl, do Recife
No restaurante Famiglia Giuliano, no bairro de Boa Viagem, recifenses degustam sua bebida predileta: uísque
Na semana passada, o inglês Jim Murray, autor do guia "Whisky Bible 2009" (Bíblia do Uísque, em português), esteve no Brasil. Depois de ter provado mais de 1,2 mil tipos de uísque para escrever o livro, ele veio ao país fazer apenas duas sessões de degustação. Uma das reuniões foi em São Paulo, capital do maior Estado brasileiro em termos de Produto Interno Bruto (PIB) e de população. O outro encontro foi no Recife, capital de um Estado que lidera um outro ranking: o de consumo per capita de uísque.
Os 8,4 milhões de pernambucanos bebem 3,5 milhões de litros de uísque por ano, segundo dados da Nielsen. São Paulo, apesar de ter quase cinco vezes mais pessoas, consome 4,6 milhões de litros. É no Nordeste (ver arte nesta página), puxado principalmente por Pernambuco, que os fabricantes do destilado concentram as vendas de uma bebida cujo consumo cai em quase todo o país. Para a Diageo, a região representa 51% do volume vendido de uísque. Para a Pernod Ricard, 40%.
Se pelos números fica fácil perceber a predileção pela bebida, tarefa mais espinhosa é explicar as razões para tal paladar. "De uma forma geral, os nordestinos preferem alimentos e bebidas de gosto mais acentuado, o que é o caso do uísque", afirma Eric Sampers, gerente da Pernod Ricard.
Não é apenas o sabor, porém, que parece impulsionar o consumo. "O uísque é associado a status no Nordeste, principalmente entre os recifenses. Por isso se bebe tanto. E esse é um dogma passado de pai para filho", diz Marcelo Ursini, gerente da Diageo.
O técnico de operações petrolíferas João Carlos Cavalcanti, consumidor de dois litros de uísque por mês, nem se acanha em admitir. "O uísque é sinônimo de sofisticação, por isso comecei a bebê-lo", afirma o pernambucano que se iniciou no destilado aos 35 anos, depois de ingerir muita cerveja.
Na prática, porém, o status pode ser questionado. Afinal, são as marcas mais baratas, que se encaixam melhor na renda do recifense, que fazem mais sucesso na capital pernambucana. Cerca de 80% da comercialização do uísque Teacher´s, da Pernod Ricard, é feita no Nordeste. Outros 90% de Bell´s, da Diageo, concentram-se na região.
Com destilados mais baratos ou não, a imagem de sofisticação da bebida é passada de pai para filho. "Aprendi a beber com meu pai. De tanto vê-lo tomar uísque, essa acabou sendo a primeira bebida alcoólica que provei", diz o gerente de restaurante Maurício Falcão.
Ele trabalha no Guaiamum Gigante, um tradicional restaurante de frutos do mar no Recife que tem mais de 700 garrafas de uísque à mostra. Todas devidamente etiquetadas com o nome de seus donos, que são sócios do chamado "Clube do Whisky". Funciona assim: o cliente compra a garrafa da bebida e a deixa no restaurante, para bebê-la sempre que for lá. Paga mais barato pela garrafa do que se fosse tomar várias doses. O sistema existe em diversas cidades do país, mas é no Recife que ele se popularizou, afirmam os fabricantes.
Seja qual for a explicação para o elevado consumo do destilado de origem escocesa no Nordeste, as indústrias investem pesado para ganhar o cliente. No ano passado, para divulgar a marca Johnnie Walker, a Diageo passava nos bares recrutando consumidores para um sobrevoo de helicóptero por Recife e Olinda. O trajeto entre o bar e o aeroporto era feito de limusine. "É uma estratégia bem cara, mas vale para ganhar o consumidor num mercado tão disputado", afirma Ursini. A Pernod promove eventos de degustação, como a sessão coordenada por Murray.
Mas, diante das elevadas temperaturas do Nordeste, logo surge a pergunta: uma bebida com teor alcoólico de 40% é compatível com o calor? "Bem, não há contra-indicações. Mas os nordestinos desenvolveram seus truques. Além de muito gelo, é comum eles beberam o uísque com água de coco", diz Kleber Prado, consultor da Sociedade Brasileira do Whisky.
O truque, para o especialista inglês Murray, beira um sacrilégio. "Ao colocar gelo ou água de coco, as pessoas estão bebendo qualquer coisa, menos uísque", dizia ele, enquanto ensinava à plateia no Recife como aquecer o destilado para extrair dele os melhores aromas. Ninguém, porém, parecia concordar. "Ele diz isso porque não mora no calor que vivemos", rebatia o gerente Falcão. Finda a sessão de degustação para os 50 convidados, hora do jantar. À mesa dos recifenses, copos e mais copos da bebida que Murray não sabe como se chama: uísque com gelo.
Veículo: Valor Econômico