O novo mapa do vinho brasileiro

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Como a união entre empreendedores e cientistas faz surgir regiões produtoras de qualidade no país

 

No início do século XIX, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853) cruzou o Brasil uma dezena de vezes para registrar a flora do país, até então pouco estudada. Suas expedições contaram com o patrocínio do Museu de História Natural de Paris e do Ministério do Interior da França. O rigor e o pioneirismo de Saint-Hilaire foram fundamentais para mapear as plantas brasileiras e o uso que delas se fazia.

 

Quando ele partiu do Rio de Janeiro com destino às nascentes do Rio São Francisco, uma peculiaridade sobre a colheita de uvas durante o inverno chamou sua atenção. “Algumas pessoas já tentaram fabricar um vinho com a deliciosa uva do tempo da seca”, afirmou Saint-Hilaire. Ele estava no sul de Minas Gerais. De acordo com seu relato, as uvas colhidas por ali no verão só serviam para fazer vinagre. Passados quase 200 anos, a uva de inverno daquela região está prestes a mudar o panorama vinícola nacional.

 

No Brasil, o cultivo da uva ocorre em nove regiões, mas nem todas reúnem as condições mínimas para produzir vinhos finos (leia o mapa abaixo). A legislação brasileira define o vinho fino como a bebida obtida pela fermentação alcoólica de uvas europeias da espécie Vitis vinifera, em oposição ao “vinho comum” feito com uvas americanas, como a Vitis labrusca, ou com uvas híbridas, geneticamente manipuladas a partir de cepas das duas espécies.

 

Até recentemente, os vinhos finos brasileiros eram feitos exclusivamente no Rio Grande do Sul, com uvas colhidas no verão, em janeiro e fevereiro. Na década de 1980, uma nova fronteira se abriu no Vale do São Francisco, onde o clima quente, aliado a novas tecnologias de cultivo e de irrigação, permite mais de uma safra por ano. Mais recentemente, a região de São Joaquim, no Planalto Catarinense, foi ocupada por vinícolas interessadas em vinhos finos de altitude. Agora, um novo terroir (palavra francesa que engloba o clima e o solo que caracterizam uma região) surge com a vocação de produzir uma bebida de qualidade superior.

 

Uma palestra sobre vinhos de Bordeaux levou um fazendeiro a trocar seu gado pelas uvas

 

“As melhores regiões produtoras de vinho do mundo reúnem as mesmas condições climáticas que encontramos no inverno do sul de Minas: dias ensolarados, baixas temperaturas à noite e pouca chuva”, diz o pesquisador Murillo de Albuquerque Regina, do Núcleo Tecnológico de Uva e Vinho da Empresa de Pesquisa Agropecuá­ria de Minas Gerais (Epamig). Cada um desses aspectos determina a qualidade do vinho. O sol produz a energia que nutre a planta, pela fotossíntese. A noite fria permite que a videira repouse sem transpirar, o que a protege da ação de fungos. E o clima seco faz a uva chegar ao ápice da maturação concentrando mais açúcar e polifenóis, os compostos que vão determinar as características do vinho durante a fermentação. A maturação é mais intensa quando a falta de água ameaça a uva. Por um mecanismo natural de sobrevivência, a videira manda todos os nutrientes para o cacho – um processo que os especialistas chamam de “estresse hídrico”.

 

Em 2001, esse modelo teórico começou a ser colocado em prática por meio de uma parceria da Epamig com um produtor de café de Três Corações. Para colher as uvas no inverno foi necessário inverter o ciclo da planta, mudando o período da poda em virtude do regime de chuvas e da temperatura (leia o quadro da última página). “Mesmo sem garantia da viabilidade financeira, eu acreditei que a introdução da uva de inverno poderia mudar o curso da história ao transformar uma tradicional zona cafeeira em região demarcada de vinho de guarda”, diz o fazendeiro Marcos Arruda, de 65 anos. “Vinhos de guarda” são aqueles que melhoram à medida que envelhecem na garrafa. O Brasil, que produz vinhos mais jovens, ainda é carente em produtos que evoluam com o tempo.

 

Médico em Poços de Caldas, Arruda se interessou pelo assunto depois de assistir a uma palestra sobre os vinhos de Bordeaux, a região da França de onde saem as garrafas mais cobiçadas do planeta. Arruda, que produzia leite e café em sua fazenda em Três Corações, abriu mão do gado leiteiro e arranjou espaço para os vinhedos. Ele entrou com a terra e a Epamig com o plano. Foram escolhidas quatro variedades de uvas viníferas europeias: cabernet sauvignon, chardonnay, merlot e syrah.

 

Onde são feitos os vinhos finos

 

“A que deu melhores resultados em termos de adaptação e produtividade foi a syrah”, diz Arruda. É dela o vinho que está prestes a ser engarrafado na vinícola experimental da Epamig e deverá chegar ao mercado em 2010. A reportagem de ÉPOCA participou de uma degustação do syrah mineiro durante o estágio final de fermentação. Mesmo sem estar “pronto”, o vinho mostrou qualidades. Ele se destaca em relação aos similares nacionais por ser mais amanteigado. Na taça, forma lágrimas que escorrem lentamente – sinal da presença de glicerina, um derivado da fermentação que geralmente deixa o vinho suave e “carnoso”.

 

Além do desafio tecnológico, os produtores têm de vencer o preconceito do mercado

 

A parceria de Arruda com a Epamig é uma entre diversas iniciativas que estão melhorando a qualidade do vinho brasileiro. Um programa de revitalização da bebida lançado pelo governo paulista também tem estimulado pequenos produtores da região, que já se associam em cooperativas, participam de seminários de vinicultura em universidades e até adotam a mesma técnica de inversão do ciclo de poda e colheita usada pela Epamig no sul de Minas. “Já tivemos uma safra de inverno em 2008”, diz o produtor Nivaldo Tordin, que produz uma variedade de uva híbrida em Indaiatuba, no interior de São Paulo.

 

Da raiz ao espectrômetro de massa

 

Algumas novidades tecnológicas que têm sido usadas para aprimorar a qualidade do vinho brasileiro saíram de universidades e de institutos de pesquisa

 

Dono de uma pequena vinícola na cidade de Valinhos, Tordin já engarrafa vinhos artesanalmente com uvas “importadas” do Rio Grande do Sul. Agora, concilia a atividade com o cultivo de uma uva chamada “máximo”, desenvolvida pelo Instituto Agronômico de Campinas a partir do cruzamento da syrah com a seibel, uma uva de mesa. Por ser híbrida, a uva máximo não produz vinho fino. Na degustação feita por ÉPOCA, ele demonstrou potencial, sobretudo para substituir a importação de uvas do Sul, que correspondem à metade do que é engarrafado no interior paulista.

 

A imagem do vinho produzido em São Paulo ainda está associada à região de São Roque, uma zona montanhosa a poucos quilômetros da capital do Estado que ganhou fama por seus vinhos de mesa e de garrafão. Esse tipo de vinho, considerado de qualidade inferior, atende 85% do mercado consumidor brasileiro. “Uma parte dos produtores de uvas de mesa daqui da região demonstrou interesse pelo vinho fino”, diz o produtor Cláudio Góes, de São Roque.

 

Góes preside a Câmara Setorial da Uva e do Vinho, criada no ano passado pelo governo paulista. Entusiasta da melhoria dos vinhos, Góes cultiva num vinhedo experimental mudas de variedades europeias para descobrir aquelas que melhor se adaptam ao clima. “Fizemos um cabernet sauvignon que foi um sucesso. Ele está abrindo um novo mercado: o dos consumidores que tendem a passar do vinho suave para o seco.”


 
Para Góes, conquistar espaço no mercado exige investimento em tecnologia, capacitação e mapeamento do clima – três atividades que estão florescendo no interior paulista depois de anos de abandono. Na Universidade de Campinas (Unicamp), quatro departamentos estão integrados no desenvolvimento de tecnologias de vinificação: as Faculdades de Engenharia Agrícola e de Engenharia de Alimentos, o Instituto de Química e a Coordenadoria de Relações Internacionais, que convida professores de universidades estrangeiras para dar aulas nos cursos de extensão da Unicamp.

 

No início de julho, os alunos tiveram aulas com professores de Mendoza, na Argentina, e da Universidade de Rioja, na Espanha, duas reconhecidas regiões produtoras de vinho. “Contamos com equipamentos como o espectrômetro de massa, do laboratório Thompson, do Instituto de Química, para fazer a análise fina dos componentes do vinho”, diz o professor Cláudio Messias. Numa amostra da bebida é possível identificar até 3 mil compostos químicos. “Com isso é possível identificar a expressão da uva e do vinho e comparar as características de diferentes variedades”, afirma Messias. Um mapeamento do Estado de São Paulo segundo as características de solo e clima está em fase de elaboração no Instituto de Economia Agrícola (IEA). “O vinho fino é viável em São Paulo, mas ele tem limitadores de preço e de status”, diz a pesquisadora Adriana Verdi, do IEA. Uma alternativa para os produtores é criar roteiros de enoturismo, como o Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, e a Estrada do Vinho, em São Roque, São Paulo. Segundo Cláudio Góes, 2 mil turistas passam pela sua vinícola a cada fim de semana. “A imagem de São Roque como um lugar onde se faz vinho ruim ainda é um problema, mas estamos nos esforçando para combater esse preconceito.”

 

Góes não está sozinho no esforço para mudar a percepção de qualidade do vinho que produz. Uma pesquisa realizada pela empresa catarinense Market Analysis com 1.037 pessoas em Porto Alegre, em São Paulo e no Recife mostrou que não basta o setor produtivo se empenhar na melhoria da qualidade. “Imaginávamos que a falta de informações era só dos consumidores. A pesquisa demonstrou que temos de agir também junto ao varejo, pontos de venda e distribuidores”, diz Denis Debiasi, presidente do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin). Para melhorar a imagem do vinho nacional, o Ibravin lançou uma campanha publicitária e adotou uma “mascote”: um saca-rolhas verde e amarelo, criado pelos renomados designers Fernando e Humberto Campana. “É preciso abrir a cabeça das pessoas para experimentar o vinho brasileiro”, diz Carlos Paviani, diretor executivo do Ibravin.

 

Segundo o Wine and spirit record 2006, um guia mundial do setor, o consumo de vinho no Brasil foi de 325 milhões de litros naquele ano, ou 1,7 litro por pessoa, em média. É pouco. No Chile, a média anual é de 30 litros por pessoa. O emprego de novas tecnologias é fundamental para garantir a melhora da matéria-prima e da vinificação, mas não é o único desafio para os produtores. No Brasil, quem decide colocar um novo rótulo no mercado enfrenta a concorrência de grandes produtores da Argentina e do Chile, que têm mais tradição e preços quase sempre tentadores. A discrepância de preço do produto brasileiro não se deve apenas à diferença na escala de produção, mas também à carga tributária.

 

Hoje, o vinho nacional paga 25% de ICMS. A cerveja e a cachaça, 18%. A Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou por unanimidade uma lei que trata o vinho como alimento funcional – e não bebida alcoólica. Com a mudança, o imposto cai pela metade. A iniciativa foi seguida pelos integrantes de uma confraria de enófilos, a Estação do Vinho, que recentemente lançou um abaixo-assinado na tentativa de criar uma lei federal idêntica à aprovada pelos deputados gaúchos.

 

Reduzir o imposto poderá melhorar a relação entre o preço e a performance do vinho nacional, tornando-o mais competitivo. Mas o futuro do vinho brasileiro não depende exclusivamente do mercado interno. “Ao contrário do que ocorre no Brasil, há uma grande curiosidade quanto ao vinho brasileiro no exterior”, afirma Eduardo Muniz, consultor da Top Brands, agência contratada pelo Ibravin para reposicionar a imagem do vinho brasileiro. Segundo ele, a percepção que se tem do produto nacional está “deslocada da realidade”.

 

Pouca gente sabe, mas o vinho brasileiro já conquistou mais de 1.700 prêmios internacionais. O Brasil produz espumantes de excelente categoria com a uva prosecco. A “bebida da moda” entre as classes emergentes nos últimos oito anos ajudou a inverter a balança comercial do vinho brasileiro: hoje, 80% dos espumantes consumidos aqui são nacionais. Transformar a imagem do vinho brasileiro ainda levará tempo. Uma frase atribuída ao barão Philippe de Rothschild, cuja família produziu algumas das maiores joias da vinicultura mundial, diz que fazer vinhos é relativamente fácil. “Difíceis são os primeiros 200 anos.”

 

Veículo: Revista Época


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