Um dia antes de receber a multa de R$ 352 milhões, a AmBev propôs ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) pagar R$ 12 milhões em troca do fim do processo. Pelos termos da proposta de acordo apresentada pela companhia, em 21 de julho, e que está até hoje sob sigilo, a ideia era destinar essa verba para o treinamento na Europa e nos Estados Unidos de técnicos dos três órgãos antitruste brasileiros (o Cade e as secretarias de Direito e de Acompanhamento Econômico dos ministérios da Justiça e da Fazenda). Por esse motivo, a proposta foi considerada imoral pelo Cade e rechaçada por cinco conselheiros durante reunião realizada na véspera do julgamento com diretores e advogados da AmBev.
Os conselheiros entenderam que a companhia propôs arcar com o treinamento de servidores públicos que, depois, iriam instruir processos em que ela responde como ré. Foi por isso que, durante o julgamento, no dia 22, o procurador-geral do Cade, Gilvandro Araújo, afirmou que a proposta era imoral. "A proposta viola a moralidade administrativa", disse Araújo, na ocasião.
A AmBev se assustou com a veemência com que o Cade recusou a proposta pois considerou-a normal. O objetivo da companhia não era o de pagar aos seus julgadores, mas sim, o de propiciar a realização de um programa de treinamento de técnicos em antitruste no exterior, sem a imposição de qualquer contrapartida.
A AmBev já fez aportes a outros órgãos públicos. Ajudou, por exemplo, a Receita Federal a se equipar na tarefa de fazer a medição em produtoras de bebidas. A companhia ajudou a implementar os chamados "medidores de vazão" para, depois, tornar mais fácil o cálculo do imposto devido pelas fabricantes de bebidas. Por isso, a proposta ao Cade foi considerada normal pela AmBev. Tratava-se de algo que a empresa já havia feito a outros órgãos públicos.
Por outro lado, a proposta repercutiu mal no Cade, onde os conselheiros viram que a sua aceitação poderia levá-los à acusação de ceder à companhia em troca do custeio de um programa de treinamento no exterior. Foi dentro deste contexto que o Cade rejeitou totalmente a proposta da companhia.
Além de pagar ao Cade, a AmBev também propôs aos conselheiros a modificação de seus contratos com os pontos de venda. Esses contratos foram a razão da abertura de processo antitruste contra a companhia, em 2004. Ao fim, foram esses contratos que levaram o Cade a aplicar a maior multa de sua história sobre a AmBev. Eles foram assinados dentro de um programa de fidelização de pontos do varejo, conhecido como "Tô Contigo" pelo qual a companhia fornecia benefícios a bares e restaurantes que compravam cervejas de suas marcas.
Para a AmBev, era apenas um programa de milhagem pelo qual os pontos de venda eram beneficiados com brindes como refrigeradores, mesas e cadeiras. Para o Cade, o programa levou a AmBev a obter exclusividade em bares e restaurantes, prejudicando concorrentes, como a Schincariol, autora da denúncia contra o "Tô Contigo".
Antevendo problemas no julgamento, representantes da Ambev alegaram, na reunião com os conselheiros, que gostariam de fazer uma adequação ao programa, restringindo-o a um contrato de adesão.
Com isso, o ponto de venda estaria livre, segundo a AmBev, para aderir ou não ao programa. O problema é que o Cade considerou que a AmBev obtinha a exclusividade junto aos bares e restaurantes sem redigi-la em seus contratos. No entendimento dos conselheiros, o programa levou à formação de uma relação de exclusividade entre a empresa e os pontos do varejo que continuaria mesmo com contratos de adesão. Por isso, essa parte da proposta da AmBev foi considerada inócua pelo Cade.
Durante o julgamento do caso, em 22 de julho, conselheiros do Cade reclamaram que a Ambev teria feita a proposta na véspera do julgamento. Porém, a companhia tentou agendar reuniões mais de duas semanas antes da data prevista para a sessão em que seria decidido o caso "Tô Contigo". Mesmo assim, os conselheiros entenderam que o processo tramitava há mais de dois anos e quatro meses apenas no Cade e, por isso, não quiseram dar uma chance à AmBev para discutir a sua proposta.
Assim, a reunião foi marcada para a véspera do julgamento. O Cade ouviu a empresa, no fim do dia 21, para multá-la na manhã do dia 22 de julho.
Em outras negociações de acordos, as empresas apresentam um valor inicial e abre-se um período de negociação com o Cade. Normalmente, o órgão antitruste pede um aumento desse valor e a garantia de que não vão existir mais prejuízos à concorrência. No caso da AmBev, o Cade ouviu o valor inicial, de R$ 12 milhões, e julgou o caso no dia seguinte. Isso significa que os conselheiros tiveram a certeza de que não deveriam aceitar a proposta. A companhia chegou ao valor de R$ 12 milhões ao calcular 1% de seu faturamento com as vendas de cerveja, em 2003, tirados os impostos. A expectativa é que o acordo chegasse, no máximo, a R$ 37 milhões. Mas, a multa, ao fim do julgamento, foi dez vezes maior.
A multa chegou a R$ 352 milhões porque o Cade calculou o faturamento total da empresa e impôs 2% após concluir que houve a intenção deliberada da AmBev de prejudicar a concorrência, inclusive com a apreensão de documentos internos que alertariam os funcionários da empresa a tomar cuidado com as autoridades antitruste. A AmBev nega que o programa "Tô Contigo" teve o objetivo de prejudicar as concorrentes.
A empresa apresentou recurso contra a decisão do Cade na terça-feira desta semana à 16ª Vara Federal de Brasília. Na sexta-feira, o juiz Francisco Neves da Cunha decretou segredo de Justiça, conforme pedido pela companhia. O Cade informou que ainda não foi intimado sobre a ação da companhia para contestá-la na Justiça.
O porta-voz da AmBev, Alexandre Loures, afirmou ao Valor que a empresa não concorda com a aplicação da multa e os juros aplicados e, por isso, recorreu. "O valor da multa reflete a diferença de percepção entre o Cade e a AmBev." Segundo ele, a companhia tentou marcar reunião para apresentar a sua proposta antes do julgamento, mas foi o órgão antitruste que agendou para a véspera.
Loures explicou que a ação está em segredo de Justiça porque o teor da proposta tramitou sob sigilo no Cade e a companhia quis preservá-lo. "Esse vazamento é grave e deve ser investigado", afirmou.
Veículo: Valor Econômico