O país da carne encara a escassez de boi

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O país do bife de chorizo, que já chegou a ter duas vacas por habitante e a ostentar o título de nação mais carnívora do mundo, assiste perplexo à crise em torno de sua pérola gastronômica. A Argentina perdeu 8,6 milhões de cabeças de gado em dois anos. Com a redução da oferta, os preços da carne bovina subiram 164% desde setembro, o maior aumento para um único produto no período, segundo a inflação medida pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires (UBA).

 

Mesmo em um cenário otimista, conforme as projeções do Instituto de Promoção da Carne Bovina Argentina (IPCVA), serão necessários pelo menos três ciclos completos de três anos cada - do nascimento ao abate - para recuperar o estoque de gado perdido. "Se tudo correr bem, é um processo que levará nove anos", disse ao Valor o diretor-geral do IPCVA, Carlos Vuegen.

 

Sem oferta suficiente, o ajuste tem se dado por duas vias. A primeira é a queda do consumo pelos argentinos. De 70,5 quilos por pessoa/ano de janeiro a maio de 2009, a média diminuiu para 55,6 quilos no mesmo período de 2010. É o nível mais baixo em uma década - ainda assim, são quase dez quilos a mais do que consomem os habitantes do Rio Grande do Sul, os maiores carnívoros do Brasil.

 

O segundo sintoma é a perda de importância da Argentina no mercado internacional. O país era o dono incontestável do título de principal exportador do mundo até 1970, quando a Política Agrícola Comum (PAC) europeia mexeu no ranking e cedeu o posto ao Velho Continente. Depois, Austrália e Brasil passaram a liderar a lista. Hoje, a Argentina disputa com países menores, como o Uruguai, o sétimo lugar entre os maiores fornecedores. De cerca de 700 mil toneladas exportadas em 2009, as vendas ao exterior devem ficar entre 310 mil e 330 mil toneladas neste ano, segundo projeções do IPCVA.

 

O marco zero da crise está na primeira metade da década de 1990, quando um número cada vez maior de pecuaristas trocou o gado pelo cultivo de soja, considerado mais rentável. A migração, que durou até 2005, provocou alterações no mapa da pecuária argentina e levou boa parte da produção para o norte do país, distanciando-se dos pampas.

 

Perderam-se 13 milhões de hectares para a agricultura. A produção não caiu, mas ficou mais cara. "O que ocorreu nesse período foi um processo gradual e lógico", diz o consultor Victor Tonelli. "O problema veio depois, com uma brutal intervenção do governo, que terminou por destruir o sistema produtivo e a possibilidade de exportação dos frigoríficos."

 

A partir de 2006, começou a cobrança de impostos sobre as exportações e os embarques chegaram até a ser proibidas, em uma tentativa desesperada do governo de aumentar a oferta no mercado interno. Houve acordos "informais" de preços e o governo ameaçou fechar os frigoríficos que pagassem um valor acima do teto definido para o gado vivo. A seca iniciada em 2008, a pior em 70 anos, completou o estrago.

 

Em um recente boletim de conjuntura, a Câmara da Indústria e Comércio de Carnes e Derivados da Argentina (Ciccra) avalia que "a política setorial pareceu ser efetiva inicialmente, porque a febre do paciente baixou e chegou inclusive a desaparecer por algum período, mas nunca se fez nada nada para tratar a doença que a causava".

 

Enquanto os pecuaristas abatiam seu gado, no processo de desinvestimento mais intenso das últimas décadas, os argentinos se fartavam de carne barata e as exportações não davam sinal de queda. Em 2009, foram produzidos 3,5 milhões de toneladas de carne com osso e as exportações chegaram a US$ 1,6 bilhão. O consumo doméstico atingiu seu recorde histórico.

 

Mas era uma questão de tempo até a febre voltar. Do total de abates, nada menos que 49,7% eram de fêmeas. Quando esse índice é superior a 40%, o estoque não se recompõe, em um processo conhecido no setor como "liquidação de ventres". De 2008 a 2010, a população bovina caiu de 57,5 milhões para 48,9 milhões de cabeças, segundo números oficiais estimados com base na quantidade de vacinas aplicadas contra a febre aftosa.

 

Os preços, que conseguiram ser controlados pelo governo e não haviam acompanhado a alta mundial da carne, finalmente subiram e se alinharam aos internacionais. Por isso, garantem os especialistas, é improvável que a Argentina passe a importar carne, como se especula, e o ajuste se dá com a queda de exportações e do consumo doméstico. Mas é certo que a crise, antes concentrada no campo, chegou aos frigoríficos, que andam sem bois para abater. Nos cinco primeiros meses do ano, a produção caiu 23% em volume.

 

A boa notícia é que há sinais de que uma recuperação - ainda lenta - está em curso, graças aos melhores preços obtidos pelos pecuaristas. As evidências já foram constatadas na proporção de fêmeas abatidas, que caiu para 43% do total em maio, e existem perspectivas de um maior índice de nascimentos. Para um rebanho de 20 milhões de vacas, houve 11,7 milhões de novos bezerros no ano passado. Em 2010, a tendência é que esse número possa atingir 12 milhões.

 

No próximo ciclo reprodutivo, espera-se aumentar mais. "O processo de desinvestimento ainda não terminou. É preciso alcançar uma taxa de nascimento de 80% do estoque de vacas", afirma Miguel Jairala, analista econômico do IPCVA. Para o consultor Tonelli, a produção voltará a cair em 2011, antes de recuperar-se a partir de 2012.

 

Tonelli também fala que a recuperação do estoque perdido virá apenas no fim da década. E insiste: "Se não houver problemas climáticos nem políticas que continuem prejudicando os negócios."

 

"Tivemos crises piores", diz o príncipe dos açougueiros

 

Para Príncipe, a normalização do mercado é questão de tempo e pode ser mais rápida com subsídios a pecuaristasCarlos Príncipe, o "príncipe da carne", faz parte da terceira geração de uma tradicional família de açougueiros. Seus avós trabalhavam na cozinha do Conde de Romanones, o principal ministro do rei espanhol Alfonso XIII. Emigraram para a Argentina na década de 1930 e instalaram uma banca de carnes no Mercado del Progreso, que ocupa cerca de 3,6 mil metros quadrados em Caballito, bairro portenho de perfil residencial e sem nenhum atrativo turístico.

 

As estruturas de ferro e de mármore do mercado, somadas às condições de ventilação, faziam do mercado um dos mais limpos da época. O crescimento da região e a presença de uma estação de metrô bem à porta aceleraram sua decadência, mas até hoje seu hall central, onde estão instalados as bancas de carne, é visitado todas as manhãs por dezenas de donas-de-casa em busca de cortes frescos.

 

Ali, pouco antes das 13h de uma quarta-feira, horário em que vendedores fecham as bancas e se recolhem para o almoço e para a sesta, até reabrir ao público quatro horas mais tarde, Príncipe lamentava a situação dos açougues e frigoríficos. "Minhas vendas caíram 35% neste ano". Cortes nobres como "bife de chorizo" (contra-filé), "ojo de bife" (miolo de alcatra) e "lomo" (filé mignon) tiveram quedas ainda maiores, com a substituição, pelos consumidores, por partes mais baratas.

 

Com a autoridade de quem passou 50 de seus 61 anos empunhando facões para esquartejar bovinos, Príncipe está convencido: a atual crise da carne é grave, mas tem uma porta de saída à vista. "Tivemos crises piores", garantiu o açougueiro, enquanto recapitulava o primeiro governo do general Juan Domingo Perón (1946-1955), que restringiu as vendas no mercado interno para priorizar a exportação. "Meu pai chegou a ser preso. Os açougueiros vendiam carne das 3h30 às 7h, antes de os fiscais saírem às ruas, mas conseguiram pegá-lo uma vez".

 

Depois, a Argentina chegou a ostentar a média de duas vacas por habitante - eram 60 milhões de bovinos e 30 milhões de pessoas -, mas novas crises voltaram a atormentar o hábito dos carnívoros. Nos governos militares que precederam a volta de Perón ao país, na década de 1970, os açougues ficaram impedidos de oferecer carne bovina até dois dias por semana, o que motivou protestos organizados de trabalhadores.

 

Durante a presidência de Raúl Alfonsín (1983-1989), o controle de preços fez a carne escassear no mercado - pelo menos para quem não estava disposto a pagar ágio. "Agora, há liberdade de compra e venda", afirmou Príncipe. Por isso, ele acha que a normalização do mercado é questão de tempo e pode se acelerar caso o governo ofereça subsídios aos pecuaristas, mas se preocupa com uma mudança estrutural. "As pessoas têm mais poder aquisitivo, mas os médicos aparecem na TV e sugerem carne vermelha duas ou três vezes por semana, no máximo."

 

Dono da única banca exclusivamente de peixes e mariscos do Mercado del Progreso, Pablo Mezzotero corria para atender oito clientes que estão na fila, a mais longa do lugar. Enquanto empacotava merluzas e lulas para sua freguesia, filosofou: "As vendas estão crescendo e tem gente que compra mais por causa dos preços da carne. Mas é uma questão de saúde, principalmente de uns seis anos para cá. O quilo do salmão chileno sai por 80 pesos, mas custa mais barato do que remédio para o coração, não?".

 

Uma das freguesas é a dona-de-casa Amalia Lucchese. "Sentimos falta de comer carne bovina todos os dias, mas, com esses preços, não podemos", lamentou a senhora, antes de pedir 500 gramas de merluza, que pretendia preparar "a la romana" (empanada) para ela e o marido. "Temos trocado por frango ou peixe pelo menos dois ou três dias por semana", comentou Amalia, em tom de resignação. (DR)

 


Veículo: Valor Econômico


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