No banquete da melhor carne gaúcha, as raças Angus, Devon e Hereford têm assento cativo. De linhagens britânicas, o trio desfila como referência para a busca do mercado interno e externo que o setor quer ampliar e consolidar. As associações de criadores lideram iniciativas próprias de certificação, com controle rigoroso dos plantéis, do campo ao ponto de venda, e que combinam investimentos em marketing, de acordo com o cacife financeiro de cada uma. Dirigentes do setor acreditam que menos de 8% dos abates estejam enquadrados neste controle de qualidade.
Em meio à promoção de seus produtos, que chegam às gôndolas de supermercados e butiques de carne em diversos mercados, até a rivalidade que sempre atiçou os bastidores pecuários ficou em segundo plano. "Se me perguntarem qual é a melhor raça, vou dizer que é a minha, mas não há como provar. Cada uma tem sua virtude e depende de como o criador conduz seu rebanho", diz o presidente da Associação dos Criadores da Raça Devon, Adelar Santarem. Para o dirigente, o desafio é entregar um produto que equilibre os atributos de uma carne com maciez e sabor.
O presidente da Associação Brasileira de Angus, Paulo de Castro Marques, adverte que a obstinação pela qualidade originou alterações no rebanho. Marques vislumbra no cruzamento industrial com a raça Nelore um resultado mais satisfatório, com potencial de maior retorno e valor das carcaças. "A carne é mais suculenta e saborosa", descreve o presidente da ABA, entidade que é identificada por um marketing mais agressivo. Já o presidente da Associação Brasileira de Hereford e Braford, Fernando Lopa, valoriza a genética desenvolvida entre os criadores, que inverteu a importação e virou referência para diversos países. Até porque os pecuaristas brasileiros e os gaúchos, principalmente, vivem à sombra dos concorrentes uruguaios e argentinos.
O lançamento recente do programa Carne Gaúcha e Melhor Carne do Mundo, uma das primeiras cartadas do governo Tarso Genro para badalar o setor, que lidera a exportação brasileira, despertou um tom de cautela entre os aguerridos defensores das linhagens. Um dos que se levantaram e recomendaram uma dose de humildade foi o presidente da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Carlos Sperotto. Para o dirigente, antes de alçar a produção gaúcha, é preciso avançar no sistema de produção, que inclui a geração de animais, o manejo e suporte alimentar, a sanidade e o processamento. Ao dividir a mesa com Santarem, Marques e Lopa, em uma degustação na Expointer, Sperotto chegou a testar a precisão das lideranças sobre os cortes à mesa e a procedência. Todos acertaram: Angus, Hereford e Devon.
O coordenador do projeto Vitrine da Carne Gaúcha, que uniu em 2009 as associações de criadores e a Farsul, Luiz Alberto Pitta Pinheiro, aposta na formação do consumidor para saber apreciar e buscar os cortes pelas seus trunfos. "As pessoas querem comer carne macia, mas para isso precisam saber que tudo dependerá da idade e da condição de abate, da terminação e do percentual de gordura", elenca Pinheiro. Para turbinar a adesão às lições que desfilaram desde o primeiro dia na feira sob o comando do açougueiro e assador Marcelo "Bolinha" Conceição (dono da grife Salsichão do Bola), a ação acoplou pesquisas que comprovam os benefícios nutricionais do alimento e incorporou o vocabulário de experts em carne, como identificar que o marmoreio, que é a distribuição da gordura entre as fibras, é o quesito decisivo na definição do sabor.
O professor da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) José Fernando Piva Lobato é singelo ao descrever o que faz a diferença do campo à mesa do consumidor. "Para ter qualidade, é preciso reduzir a idade de abate e ter boa terminação." Já segundo o presidente do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados do Estado (Sicadergs), Zilmar Moussalle, que computou o abate de 1,8 milhão de animais em 2010, o sonho de consumo do setor é receber exemplares com maior uniformidade. "Temos hoje mais de 40 raças, entre puras e cruzamentos, o que não dá padrão e vira diferencial negativo. O ideal seria entre seis e oito", opina o dirigente.
Cortes clássicos na mira de experts
Do açougueiro Marcelo "Bolinha" Conceição ao chef Gerson Tibúrcio Gonçalves Sobrinho, da rede de churrascarias Barbacoa, com casa em São Paulo, no Japão e na Itália há um consenso. Os cortes e o assado dependerão da qualidade do animal que chega às mãos dos dois especialistas. "Bolinha", que chega a hipnotizar plateias nas aulas do programa Vitrine da Carne Gaúcha no Pavilhão Internacional da Expointer, percorre hoje o País esquartejando as virtudes da boa carne aos apreciadores de um bom churrasco, colegas de profissão, gourmets e chefs de cozinha.
"Ensino desde como comprar o produto nos mercados ou frigoríficos até os cortes e o preparo", descreve o gaúcho. Para ele, a Vitrine está qualificando o gosto do público. Para facilitar a transmissão de seu conhecimento, assimilado com o pai açougueiro, de quem herdou a casa de carnes situada no bairro Cidade Baixa em Porto Alegre. Entre as lições do açougueiro, está que não existe carne de primeira e segunda "se o boi é bom".
Por isso, "Bolinha" se esmera em desenvolver cortes que possam explorar todas as benesses da carcaça, o que resulta em opções na gôndola com preços mais acessíveis e com garantia de qualidade. "Tenho 30 cortes no meu portfólio. Picanha costuma ser a preferida, mas mostro às pessoas que há outros muito melhores", provoca o público. Na campanha da melhor carne, o açougueiro recomenda cuidado e evita se posicionar. Ele tem sua preferida, mas diz que não revela para "não comprar briga". Ao público que ouve suas lições, "Bolinha" costuma ser cortante na definição sobre marmoreio e quanto à gordura, na dose certa, faz muito bem à carne e a quem for elaborar o assado.
O chef do Barbacoa, responsável pela compra de 8 mil quilos de carne bovina que semanalmente aporta nos restaurantes da grife no Brasil (em São Paulo e na Bahia), confessa sua preferência pelas raças britânicas.
Os cortes que abastecem sua clientela são oriundos de fazendas gaúchas. "Reúnem na dose certa suculência, maciez e marmoreio", enumera o profissional, que foi convidado do estande da Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne (Abiec), em parceria com a Apex-Brasil, na feira. Atendendo a gostos diferenciados, Sobrinho costuma combinar 70% de encomendas de cortes britânicos (Angus, Devon e Hereford) com 30% de Nelore, bem ao gosto dos paulistas.
A mostra da reconciliação
No final da Expointer 2010, produtores confidenciaram à presidente da Federação Brasileira das Associações de Criadores de Animais de Raça (Febrac), a bióloga Elizabeth Cirne Lima: "Acho que é o último ano que venho à Expointer". A reação traduzia o temor com a vitória petista no Estado, que se confirmaria em outubro, e de remexer no passado de conflitos. A vitória veio, os produtores compareceram e o ambiente no Parque Assis Brasil é de reconciliação. Reconduzida a um segundo mandato na entidade, Elizabeth reconhece a maior interlocução com o governo. Sobre o entrevero pela melhor carne, a bióloga diz que, acima das vaidades, é preciso trabalhar pelo produto gaúcho.
Jornal do Comércio - O programa do governo Carne Gaúcha e Melhor Carne do Mundo conseguirá alavancar a pecuária gaúcha?
Elizabeth Cirne Lima - O maior problema da pecuária do Estado hoje é a fome, depois a sanidade. Se todos os anos a produção cai, a empresa vai mal. Isso ocorre independentemente de ter seca, muita chuva ou geada. Acontece porque o rebanho não recebe a nutrição adequada para continuar a ganhar peso. Isso significa trabalhar de forma deficitária e ineficiente. Além de ter pastagens, é preciso fazer suplementação com grãos e proteína, o que aumenta muito o custo e não conseguimos pagar a conta.
JC - É mais econômico produzir menos?
Elizabeth - Exatamente. Se formos produzir na força máxima, cada animal poderia ganhar mais quilos. Mas não temos como dar mais comida no inverno. No Primeiro Mundo, os bichos têm um palmo de neve acima do lombo e não perdem peso, pois recebem suplementação alimentar o ano inteiro. Se fizermos isso aqui, não pagamos a conta. É a mesma história do arroz: por que uruguaios e argentinos produzem mais que nós? São os impostos, o custo é um terço do nosso.
JC - O programa de qualidade da carne ataca esta dificuldade?
Elizabeth - Não. Está mais preocupado que os pequenos produtores tenham animais com padrão genético superior. Mesmo produzindo fora das condições ideais, haverá esta melhoria. Mas é muito mais uma ação social, pois este segmento responde por uma pequena fatia da produção. O governo está investindo para melhorar a carne. Dentre as ações, estará o Dissemina, lançado pelo governador Tarso Genro, na qual as associações de criadores vão doar doses de sêmen de animais de qualidade para o governo, que capacitará e dará assistência aos pequenos para que eles acessem esta tecnologia. Eles terão um suporte para acabar com a fome? Não. Mas se eles têm animais com genética superior, a situação melhora.
JC - O setor não espera mais que isso?
Elizabeth - O programa está sendo apoiado por todos. O que tem de positivo é que, por mais que as coisas não estejam exatamente onde gostaríamos, os dirigentes estão encaminhando os problemas para solução, atendendo nossos projetos. Quando o governo está desenhando suas ações, nos chama. No ano passado ouvi de vários produtores no final da feira: "Acho que é o último ano que venho à Expointer."
JC - Mas, na época, não estava definido quem venceria a eleição ao governo.
Elizabeth - O outro governo do PT (1999-2002, de Olívio Dutra) foi muito complicado. Mesmo que não tivéssemos o resultado, já estava no ar a tendência da eleição de Tarso Genro.
JC - O que marcou o primeiro governo do PT?
Elizabeth - Muito desentendimento e falta de diálogo. Houve as invasões. Foi de muito enfrentamento. Hoje temos uma situação oposta. O governo ouve conselhos de diferentes lideranças. O programa da carne é um exemplo. Algumas pessoas comentaram sobre o assunto com o governador e o secretário da Agricultura (Luiz Fernando Mainardi) no ano passado, antes da posse. Quando eles assumiram, chamaram produtores, Embrapa e frigoríficos para formar a Câmara Setorial da Carne. Não vamos resolver todos os problemas, mas estamos definindo linhas de ação.
JC - O Estado pode perder espaço na pecuária nacional?
Elizabeth - Não. A tendência é melhorar. Teremos cada vez mais qualidade. A rastreabilidade não é o nosso maior problema. Para o governo, virou uma questão de honra, tem de fazer para o resto dar certo. Trabalho em Santa Catarina, que tem todo o rebanho rastreado. Lá mudou muito pouco. Os problemas de sanidade, manejo e terminação são muito mais importantes. O estado vizinho virou uma ilha, pois ninguém mais rastreia, e é o único com zona de aftosa sem vacinação. Não entra e não sai nada.
JC - As novas gerações se rendem a esta segurança?
Elizabeth - O jovem vem com outra cultura. Há uma mudança e para melhor. Os filhos foram estudar. Na volta, os pais abriram espaço para um manejo moderno, com análise de solo, correção de potreiros para ter rendimento de pastagens, com maior suporte alimentar aos animais.
JC - Qual é a sua opinião sobre a proposta do governo de um selo da carne independentemente da raça?
Elizabeth - É fundamental. Temos raças muito boas com suas peculiaridades. Em relação a outras regiões do País, podemos ter a carne de maior qualidade por conta do tipo de animal produzido aqui, com características superiores e equivalentes às dos argentinos e uruguaios.
JC - Existe uma carne melhor?
Elizabeth - Existe disputa para saber quem faz a melhor carne entre as raças. Cada um diz que é a sua. Mas tem um grupo que é o das boas. A vaidade, em alguns momentos, é um combustível interessante. Não precisa acabar com as raças dentro do novo programa, os selos ou com a disputa. Dentro de certo padrão ela é saudável. Mas é preciso agir acima das raças e com apoio das associações. Não tem espaço para disputa de raças. Tem, nós gaúchos, querendo trabalhar pela carne do Estado.
Veículo: Jornal do Comércio - RS