Madrugada em meio aos barcos de pesca artesanal do Ver-o-Peso

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Visitar as barracas do mercado Ver-o-Peso, símbolo de Belém e a mais movimentada feira da cidade, é uma oportunidade de conhecer a síntese da cultura paraense. Entretanto, uma experiência única é acordar de madrugada e presenciar a chegada dos barcos de pesca artesanal, a pesagem dos peixes - o que deu origem ao nome do lugar - e o carregamento nos caminhões frigoríficos dos distribuidoras. Das 4 às 7 horas, num lamacento espaço de 15 metros de largura por 20 de comprimento, na Doca do Porto de Belém, todos os dias se repete o ritual iniciado 381 anos atrás, quando o famoso mercado a céu aberto foi criado.

 

É ali, ao lado do Forte do Castelo e num ancoradouro simples que a cidade acorda há mais de três séculos. Como no passado, os pescadores continuam necessitando ver o peso do seu pescado para entregá-lo aos primeiros elos de uma longa cadeia de atravessadores até os viçosos pirarucus, piramutabas, gós, pescadas amarelas, gurijubas e tantos outros tipos fisgados no mar e nos rios chegarem à mesa dos consumidores em todo o Brasil.

 

Diante de tanta diversidade do pescado, do tamanho e do preço - um quilo de pescada amarela, nessa época sai por R$ 4,50, um quarto do valor pago em um supermercado da capital paulista -, é difícil resistir à vontade de levar um exemplar fresquinho para casa. São mais de duas toneladas por dia que chegam e saem da Pedra do Ver-o-Peso, como popularmente é conhecida a Doca do Porto de Belém. Apesar do avanço da pesca industrial e da inevitável redução da atividade de pequenos e médios barcos, o entreposto pesqueiro continua como um dos maiores do País.

 

A primeira sensação é a de retorno ao passado e de estar presenciando uma espécie de feira medieval. Carregadores saem dos barcos recém-chegados da baía de Guajará com cerca de cem quilos de peixe em barquetas (caixas de plástico e madeira) na cabeça. Pescadores pendurados no lado de fora facilitam o ir-e-voltar desses trabalhadores, também chamados de caixeiros, deixando a carga à mão.

 

Enquanto mulheres vendem cafezinho, os marreteiros e alguns raros consumidores finais pechincham, pedintes e ladrões também ajudam a aumentar o movimento só aparentemente confuso, pois tudo acaba funcionando. E no meio de tudo isso, filas de balanças de grande porte comandadas por seus proprietários, os balanceiros, medem as transações comerciais, como acontecia na origem do Ver-o- Peso, que data da segunda metade do século XVII. Em 21 de março de 1688, quando resolveram estabelecer um rígido controle alfandegário na Amazônia, os portugueses criaram um posto de fiscalização e tributos. E assim nasceu a casa do Haver-o-Peso, onde uma balança e um funcionário público eram o elo entre pescadores e compradores.

 

Lugar esse que hoje é dos balanceiros. O vai-e-vem é em ritmo acelerado, tornando coisa normal alguns peixes irem parar de vez em quando no chão coberto de lama. Não representa problema, pois são devolvidos às barquetas sem maiores cerimônias. No máximo recebem uma caneca de água. "O peixe é todo ‘sifado’ antes de ser distribuído", diz o carregador Marinaldo Barbosa, referindo-se ao Serviço de Inspeção Federal (SIF).

 

Tanto pragmatismo tem lá suas razões. Os caixeiros não têm tempo a perder. É muito peso na cabeça e eles precisam correr para ganhar o dia em apenas algumas horas. Com passos rápidos, tiram o pescado dos barcos, depositam nas dezenas de balanças e dali levam as caixas para os caminhões frigoríficos estacionados no outro lado da Doca do Porto de Belém. "Tá pingando, tá pingando" é a senha para avisar: quem não abrir caminho está sujeito a ser atingido pela "água de peixe" que respinga das caixas acima da cabeça dos carregadores.

 

Mas ninguém reclama de nada. Ao contrário, o brega paraense tocado em volume na aparelhagem de som instalada na carroceria da caminhonete confere um certo clima de festa na madrugada. Seguindo o estilo do movimento musical popular paraense - o brega, de cunho popular e caracterizado por letras irreverentes -, estão sempre bem-humorados e tudo vira motivo de piada.

 

Criatividade também não falta para desempenhar a tarefa. Cuias de tacacá, almofadinhas de sarrapilha e bolas de futebol partidas ao meio - essas são as preferidas por vedarem a umidade - se transformam em úteis chapéus (ou rodilhas) para amortecer o peso e evitar machucados no couro cabeludo. Ganham R$ 5 por carregamento de caixa num trajeto de cerca de 100 metros. Quando o movimento está bom, Manuel Moraes, 53 anos e há 28 trabalhando "de segunda a domingo" na Doca do Porto de Belém, consegue tirar até R$ 150.

 

Os personagens que desde sempre ocupam o centro da atividade na Pedra do Ver-o-Peso são os balanceiros. Sentados em banquinhos atrás das balanças colocadas uma ao lado da outra, em três filas na apertada Pedra do Ver-o-Peso, não apenas desempenham atividade típica e rara. Eles mandam no pedaço, exercendo papel relevante na pesca artesanal da região, pois financiam os barcos e as pequenas canoas que aportam na Baía do Guajará, formada pelos rios Guamá, Moju e Acará. Em troca, ficam com um porcentual do lucro da embarcação, geralmente 6% sobre o preço de venda aos compradores de São Paulo, Rio, Brasília, Bahia, Minas, entre outros estados.

 

E com um detalhe: quem negocia esse preço são os balanceiros e não os pescadores ou donos dos barcos. Segundo o último cadastro da Associação dos balanceiros do Ver-o-Peso, são 200 em atividade. Para chegar por volta das 3h30 no trabalho, eles costumam acordar às duas da madrugada.

 

O porta-voz do grupo, Jaime da Silva Assis, 73 anos e há 56 anos na profissão, solta o verbo para falar "da triste realidade" da atividade, sem deixar de anotar em seu caderninho os valores a receber pela pesagem do pescado. Segundo ele, os problemas atuais vão desde a falta de segurança no trabalho até as conseqüências negativas do avanço da pesca industrial na região amazônica, agravadas pela destruição do meio ambiente. "O Pará deixou de ser um grande campo pesquei-ro, resultando em miséria para mais de 50 municípios que têm sua economia baseada na pesca artesanal", acrescenta.

 

Com isso, os médios e pequenos são obrigados a permanecer entre 30 e 40 horas em alto-mar, quando há alguns anos precisavam de seis horas. De rio vem muito pouco peixe, completa. "Ultimamente, quem está se dando bem são os urubus", alfineta, apontando para dezenas dessas aves ao lado dos barcos esperando as carcaças dos peixes jogadas pelos fileteiros - que ganham a vida transformando o pescado comprado inteiro em filés.

 

A cena resultou até em ditado muito popular no Pará. Quando alguém quer se referir a outra pessoa de forma pejorativa, diz que "fulano de tal ganha de urubu do Ver-o-Peso". "Esses urubus gostam de ficar nessa festa de baixo nível, se deliciando com as espinhas e peles dos peixes", define Assis, que por pouco não compara os políticos a essas aves predadoras.

 

É assim, uma mistura de tradições do passado com contradições e inovações do presente que o Ver-o-Peso permanece vivo. Depois que o dia amanhece, o visitante ainda pode esticar. Na continuidade da Pedra do Ver-o-Peso fica a Feira do Açaí. Nessa parte do Porto de Belém, pequenas canoas chegam abarrotadas de cestos da fruta, e o ritual é o mesmo. Só faltam as balanças - a fruta é medida em cestos artesanais, que vão sendo amontoados na beira do cais, conforme os compradores vão transferindo a carga para os carros do outro lado da praça.

 

Se depois de tudo isso o turista ainda estiver disposto, pode completar o giro no complexo Ver-o-Peso, explorando as cerca de 2 mil barracas destinadas ao comércio varejista. São dezenas de pequenas tendas divididas em vários setores: nas de comida pronta é possível experimentar o verdadeiro açaí na tigela. Originalmente, o suco da fruta é consumido com peixe frito ou camarão seco com farinha, uma verdadeira refeição, muito mais forte do que o lanche servido fora do Norte, adaptado com granola e frutas. Tem cerâmica da Ilha de Marajó e outros artesanatos, polpa de frutas congelada, maniçoba semi-pronta, pirarucu e camarão seco.
Mandingas e remédios para curar todos os males - inclusive os da alma - são atração nas barracas das mandingueiras. E ao lado da simplicidade dos produtores regionais e dos locais de comercialização, dá para apreciar obras arquitetônicas, como o Mercado Municipal de Carne e o Mercado de Ferro, ou de Peixe, com suas inesquecíveis torres, todas em ferro forjadas em Londres e Nova York e montadas durante o apogeu do ciclo do látex na Amazônia.

 

Ao final disso tudo, uma mistura de cheiros, sabores, cores e sons. E se fosse para buscar uma expressão bem paraense para resumir tudo, a melhor seria "pai d’égua". É isso que eles falam para denominar as coisas muito boas.

 

Veículo: Gazeta Mercantil


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