Carne argentina, uma tradição ameaçada

Leia em 5min 10s

Se nada mudar na política agrícola da Argentina, o país poderá ter que importar carne bovina nos próximos dois anos.

 

A previsão começou a circular entre pecuaristas, empresários e entidades ligadas ao campo no país nas últimas duas semanas, à medida que surgem as primeiras projeções do prejuízo causado ao setor pela pior estiagem dos últimos 50 anos, que afeta o país desde dezembro. Calcula-se que mais de 1,5 milhão de animais tenham morrido, sem contar as pastagens perdidas pela seca, ainda não estimadas. 


Uma das mais fortes "marcas" da Argentina no exterior, ao lado do tango e do vinho, a carne bovina está perdendo cada vez mais espaço na produção nacional. 

 

O país, que era o terceiro maior exportador de carne do mundo em 2005, depois de Brasil e Austrália, hoje é o sétimo, com 500 mil toneladas exportadas, superado até pelo pequeno Uruguai que tem um plantel muito menor, mas exporta 520 mil toneladas. 

 

Segundo o economista Ernesto Ambrosetti, titular do Instituto de Estudos Econômicos da Sociedade Rural Argentina (SRA), o maior indicador dessa tendência é o forte crescimento do abate de matrizes bovinas. "Há mais de um ano que o abate de vacas está próximo dos 50%", afirma o economista, lembrando que a média histórica é 40%. Se não há vacas, não há produção de bezerros, o que compromete a produção futura, não só de carne, mas também de leite e derivados. 

 

Em 2008 a Argentina abateu perto de 15 milhões de cabeças de um plantel de 58,8 milhões de bovinos. A produção de carne no ano passado ficou próxima a 2,8 milhões de toneladas de acordo com as estatísticas até novembro, último dado disponível. Projeções feitas pela Associação Argentina de Consórcios Regionais de Experimentação Agrícola (Aacrea) apontam que a produção pode ter atingido 3,15 milhões de toneladas no acumulado até dezembro. Caso se confirme esse número, representaria uma queda de 2% comparada a 2007. 

 

A queda é pequena e deve ter se recuperado em janeiro, exatamente porque está sendo suprida com a carne de vaca, alerta Ambrosetti. O problema, portanto, ainda não chegou aos frigoríficos que têm oferta garantida por enquanto, embora estejam sendo afetados pelas restrições às exportações. Dois grandes frigoríficos brasileiros, a JBS e a Marfrig, dominam quase metade do setor na Argentina. Até o fechamento desta edição eles não responderam ao pedido de entrevista sobre o assunto. 

 

Por outro lado, o consumo interno de carne está cada vez maior. Os números da SRA, compilados de dados oficiais, mostram que os argentinos consumiram entre janeiro e novembro de 2008, 2,4 milhões de toneladas de carne. O consumo per capita, próximo a 70 quilos por habitante/ano, é o mais alto do mundo. 

 

Os pecuaristas e especialistas do setor alegam que a produção está em baixa desde 2005, quando o governo deu início a uma forte intervenção no mercado. Começou com o estabelecimento de um peso mínimo de 260 quilos para o abate de novilhos, e a eliminação de um incentivo às exportações na forma de devolução de impostos. 

 

Nos três anos seguintes outras oito medidas foram tomadas pelo governo para controlar a saída de carne do país e forçar uma queda dos preços do produto no varejo. A última foi a obrigatoriedade de um "encaixe" equivalente a 75% do estoque nos frigoríficos para garantir a oferta interna. 

 

"A única política deste governo para a pecuária é garantir carne farta e barata para o povo, a qualquer custo. Não há visão de longo prazo", afirma Ambrosetti. 

 

O objetivo foi alcançado, de fato o preço do quilo da carne no varejo é mais baixo que qualquer outra opção, seja frango, peixe ou massa, resultado do controle de preços imposto pelo governo. "O produtor recebe hoje 2,90 pesos por quilo do novilho no Mercado de Liniers (principal centro de negociação do produto no país), o que é o mesmo valor de 2005", afirma o economista da SRA. Nesse meio tempo, diz ele, todos os custos aumentaram: energia, alimentação, sanidade, serviços, maquinaria. 

 

"A produção está sendo liquidada porque a pecuária na Argentina não é economicamente rentável", completa Gustavo Hardt, produtor na região leste da província de Buenos Aires e diretor da Confederação de Associações Rurais de Buenos Aires e La Pampa (Carbap). Pecuaristas e agricultores argentinos já preparam uma nova paralisação em protesto contra a política agrícola. No ano passado, pelo mesmo motivo, eles pararam o país por três meses e, com sua pressão política, derrotaram no Congresso uma proposta do Executivo de aumentar as retenções sobre exportações de produtos agrícolas. 

 

"A política em relação à carne, ao trigo, ao leite e ao milho é um desastre, e, no ano que vem é muito provável que tenhamos que importar carne", disse ao jornal La Nación o empresário Gustavo Grobocopatel, considerado o Rei da Soja na Argentina. 

 

Com menos rentabilidade, além de sacrificar as vacas, os pecuaristas estão transferindo gado de regiões nobres e tradicionais nos Pampas para áreas de terras de mais baixa qualidade no norte e noroeste do país. Segundo cálculos da Aacrea, a cada 100 vacas transferidas para estas regiões, são produzidos 21 bezerros menos. 

 

As chuvas começaram a voltar à Argentina esta semana, mas as perdas em algumas atividades agropecuárias são irreversíveis, dizem os especialistas. Embora não haja números fechados, já se sabe que além dos animais mortos, a estiagem provocou a perda de pastagens semeadas nos últimos dois anos e a queda da fertilidade das vacas pelo stress da falta de água. O volume das perdas será conhecido em junho, quando o governo concluir a primeira etapa de vacinação contra a febre aftosa entre abril e maio. 

 

Veículo: Valor Econômico


Veja também

Coperfrango atrasa pagamento de salários por falta de crédito

Sem obter crédito para injetar R$ 3 milhões em capital de giro, a Coperfrango, maior cooperativa aví...

Veja mais
Preço da carne bovina deverá cair no balcão

Associação Gaúcha de Supermercados projeta queda de 10% no valor dos cortes nobres no varejo esta s...

Veja mais
Lula vê criação de peixe em alto mar

Em meio a tantos eventos em torno do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em todo o País, o ...

Veja mais
Exportações de frango ensaiam recuperação

Desde novembro, os exportadores de carne de frango deixaram de faturar US$ 142 milhões com exportaçõ...

Veja mais
Frigoríficos perdem US$ 275 mi e apertam UE

Depois de amargar em janeiro o terceiro mês consecutivo em queda nas exportações, o setor produtor e...

Veja mais
Perdigão vira o jogo, fica maior e até poderia comprar a concorrente Sadia

Dois anos após a Sadia ter feito uma oferta hostil para compra da Perdigão, a situação se re...

Veja mais
Por R$ 1,4 bilhão, novo sócio assumiria o controle da Sadia

Depois de ver seu valor de mercado sair do patamar de R$ 8,3 bilhões em maio de 2008 para os atuais R$ 2,6 bilh&o...

Veja mais
Otimistas, avicultores não cortam a produção

O baixo custo com o milho, principal matéria prima dos avicultores, está protelando o ajuste da produ&cced...

Veja mais
Sadia pode ser controlada por R$ 1,4 bi

Com o aporte de R$ 1,4 bilhão, um novo sócio assumiria o comando da Sadia por meio da compra de 48% das a&...

Veja mais