A aposentada Jussara Mello já tem a solução para não abrir mão de um hábito quase imexível dos gaúchos. Para manter a carne bovina na mesa e contornar a alta de preço, que ultrapassou 15% em 2015, Jussara apelou para a solução tipo "bifinho". Compra porções menores da proteína e alonga ao máximo a vida útil dos filezinhos nas refeições. Um dia faz carreteiro, no outro refogado com legumes. "De vez em quando, apetece comer uma carninha, né", rende-se. Mas a aposentada não escapa de levar mais sustos. Numa ida recente ao supermercado, Jussara se negou a pagar mais de R$ 13,00 por três bifinhos. "Mais de R$ 4,00 cada um? Não dá. Aí substituí. Comprei salsichão, fritei e comi aquilo mesmo", contou. "Só não é a mesma coisa, né, queria comer mais bifinhos."
Os preços da carne vêm massacrando os adeptos. O IPCA, índice oficial de inflação, subiu 15,38% em Porto Alegre. O índice geral ficou em 11,22% na Capital e a média no País, em 10,67%. A cesta básica apurada pelo Dieese teve alta de 15,45% na proteína. O produtor teve valorização de 11,18% pelo quilo da carcaça, e os frigoríficos repassaram 8,53% ao varejo, segundo a Federação da Agricultura (Farsul) e o Sindicato da Indústria de Carnes (Sicadergs). Para ajudar a esquentar a brasa desse assado, o Estado abateu 152 mil bovinos a menos em 2015 que em 2014 (queda de 7,4%), em um ano de estiagem no Centro-Oeste, maior produtor do rebanho e que costuma suprir a demanda gaúcha.
Nem a importação de carne da Argentina (volume 167% maior em 2015 frente a 2014) segurou os preços. Alguns consumidores compraram picanha argentina a menos de R$ 30,00 o quilo entre Natal e Ano-Novo, uma pechincha perto dos R$ 69,99 a R$ 76,96 pelo quilo do mesmo corte flagrados em estabelecimentos da Capital em 30 de dezembro pela pesquisa quinzenal do Núcleo de Estudos em Sistemas de Produção de Bovinos de Corte e Cadeia Produtiva (Nespro), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). O vazio, que valia R$ 31,90 em fim de 2014, subiu a R$ 37,98. No site ufrgs.br/nespro, é possível conferir a evolução.
"Não é porque o boi está mais caro, mas porque aumentaram os custos. A produção no campo subiu 25%, e tiveram os aumentos severos de combustíveis, energia e mais inflação", explica Antônio da Luz, assessor econômico da Federação da Agricultura do Estado (Farsul). Porto Alegre teve a terceira maior alta do produto no IPCA entre capitais, ficando atrás apenas de Curitiba (19,82) e Recife (17,95%). No valor da cesta básica em dezembro (R$ 418,21), o item representou 38,5%, o maior custo isolado. "Uma família gastou R$ 161,24 só com carne", avisa a economista do Dieese Daniela Sandi. A alta acumulada de 2005 a 2015 foi de 158%, para um INPC de 80,09%. "Por isso, temos a cesta mais cara das capitais", rende-se o presidente da Associação Gaúcha de Supermercados (Agas), Antonio Cesa Longo. O Dieese pesquisa 18 localidades, São Paulo teve a segunda mais alta (R$ 412,12).
Em busca de ofertas, Jussara foi a um açougue no Mercado Público, no Centro Histórico de Porto Alegre. As promoções de cortes mais populares cresceram. "Aqui está mais barato", comemora a consumidora, com aposentadoria de pouco mais de R$ 1 mil, que já incluiu mais frango no cardápio, caminho seguido por muitos que haviam aumentado a cota de carne bovina à mesa nos últimos anos. Longo confirma a tendência. A carne vermelha, diz, respondia por 60% do volume vendido em 2014 e passou a 50% agora. Frango e porco subiram na preferência.
"Tem de se adaptar e pedir costela e vazio, com preços mais favoráveis", diz o advogado Sérgio Canarin. A picanha, que ele costumava servir no churrasco de fim de semana, escasseou. "Só em aniversários e Ano-Novo", descontrai o advogado. O aposentado Ercino Rodrigues é direto: "Picanha nem pensar, tá muito cara, e agora é bife e frango. Mas dá saudade de uma picanha. Bah, se dá. Gaúcho, a senhora sabe, é lei ter picanha, costela boa e brasa bem acesa."
Dono de um açougue no Mercado Público, Pasqualino Gugliotta diz que frango e porco viraram alimentos do momento. "A classe média aderiu mais, e a alta também, mas um pouco menos. Não é a crise, é que a carne vermelha subiu demais", justifica. O açougueiro registra queda de até 40% na venda dos cortes bovinos mais valorizados, da maminha à picanha. Antes do Natal, houve maior oferta e até alta de preço na indústria. "A procura aumenta, a indústria abate mais e quer mais preço."
Antônio da Luz, economista-chefe Farsul: A alta do preço da carne é efeito da queda do abate interno (menor impacto), menor oferta de gado do Centro-Oeste (importante para suprir a demanda do gaúcho), maiores custos (25% na produção do agronegócio) e inflação ao consumidor. Evitou subida maior de preço o direcionamento de parte da carne que iria à exportação ao mercado interno, que consome 80% da produção brasileira. A receita externa gaúcha (dólares) de carne bovina caiu 9,6% e o volume, 5,6%, e a brasileira recuou 18,4% e 11,5% em volume. Preços devem se manter ou subir mais, ao lado de menor consumo, já verificado em 2015 e provocado por renda e PIB do País menores e inflação em alta (cada um ponto a mais no IPCA impacta 0,1% no consumo da carne). Estudos indicam que a cada 1% de queda na renda per capita o consumo da carne cai 0,5%. Inflação alta e renda em baixa devem derrubar 3 do consumo. A exportação será peça chave em caso de superoferta de carne.
Ronei Lauxen, presidente do Sicadergs: A oferta de bovinos vai continuar menor, seguindo o volume de 2015 (7,4% menor). O preço só não subiu mais por causa do crescimento, renda e consumo em queda. O setor não conseguiria absorver altas de preços. As exportações, que caíram em 2015, podem pressionar os preços ao consumidor caso retome o fluxo ascendente dos últimos anos. Novos mercados externos podem reduzir a ociosidade das plantas, que está entre 25% e 30%.
Antonio Cesa Longo, presidente da Agas, FEE e importador: Longo diz que nem varejo, nem indústria ou produtor são culpados pela alta. O mercado externo deve demandar mais produto este ano, reduzindo oferta interna e afetando preços. Mas isso é saudável, diz Longo, para gerar receita e empregos no Estado. Os consumidores migrarão mais para cortes mais baratos e frango e porco. A FEE apurou alta 176% no volume importado da Argentina em 2015 (63,5 toneladas) ante 2014 (23 mil t), mas queda de 34% do Uruguai. A diretora geral da importadora NW Royal, Idelurdes Bernardo dos Santos, cortou 10% o volume trazido do Uruguai, após a alta do dólar. A NW atende restaurantes e butiques de carnes no Sul e Sudeste. Idelurdes cortou margens para não perder mercado.
Veículo: Jornal do Comércio - RS