Podemos ficar sem peixe?

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A quantidade de peixes no oceano vem caindo e a criação em cativeiro entrou em crise. Como criadores e cientistas tentam resolver o problema

 

O ano de 2009 entra para a história como o momento em que a humanidade passou a comer mais peixes criados em cativeiro que pescados. A produção mundial das fazendas de peixes já havia empatado, no ano passado, com a da pesca. A notícia poderia fazer a alegria de ambientalistas e apreciadores de sushi e peixes em geral, preocupados com a redução de cardumes nos oceanos e com a decadência da pesca. A mudança, porém, vem com uma série de alertas e novos perigos, incluindo prejuízos de criadores, pragas, alto impacto ambiental e peixes saturados de antibióticos. A humanidade, incluindo o Brasil, pode estar apenas trocando de problema, caso não haja soluções inovadoras para os riscos da aquicultura, a criação de animais aquáticos, como peixes e camarões.

 

A aquicultura, praticada há milênios, virou uma grande promessa no último quarto do século XX, quando ficou evidente que a humanidade vinha retirando dos oceanos e rios mais peixes que a natureza conseguiria repor. Mesmo com o esforço de pesca crescente, a produção mundial baseada na simples captura de peixes parece ter atingido um teto, próximo dos 95 milhões de toneladas. Agora, sua tendência é diminuir. Para garantir que não falte peixe, o Brasil e o mundo depositam suas esperanças na criação em cativeiro.

 

Conforme a aquicultura passou a suprir 30% do consumo brasileiro e mais de 50% do consumo mundial, seus problemas se tornaram mais evidentes, não só na reprodução e engorda dos animais, mas também no processamento e na distribuição. “Todos os elos da cadeia do peixe têm deficiências, quase todas causadas por desconhecimento técnico ou falta de tecnologia”, afirma a pesquisadora Emiko de Resende, coordenadora na Embrapa do projeto Aquabrasil, que pretende suprir essa carência de maneira ambiental e socialmente responsável. “A aquicultura é a criação mais delicada que existe”, afirma Eduardo Kubo, diretor do Instituto da Pesca da Secretaria de Agricultura e Abastecimento de São Paulo. “Qualquer oscilação nas condições da água ou no manejo do peixe pode causar grandes perdas.”

 

Pragas, excesso de medicamentos e carne com gosto de barro são alguns dos problemas nas criações

 

Mesmo criadores altamente qualificados sofrem para obter sucesso no setor. Fernando Kubitza, doutor em aquicultura pela Auburn University, dos Estados Unidos, ainda tenta desvendar as estratégias de reprodução da espécie que escolheu (o pirarucu, da Amazônia), altamente exigente com as condições ambientais. “Acredito que em dez anos o pirarucu possa ser criado em escala industrial”, afirma. Uma equação básica para o negócio, mas ainda não resolvida, envolve o volume de água disponível, a quantidade de peixes e a lucratividade. Pela lógica, quanto mais peixes em menos água, mais lucro para o criador – o que atrairia mais gente para o negócio, consequentemente mais peixes criados e menos pesca, e assim por diante. Só que manter peixes em excesso em um viveiro parece uma receita certa para desastres ambientais e econômicos. A competição dos animais por alimento não permite ganho de peso adequado. A lotação também deixa os peixes estressados. Isso diminui sua resistência imunológica e os deixa mais vulneráveis a doenças. Por último, um grande número de peixes em uma área restrita facilita a disseminação rápida de doenças e parasitas. Foi o que ocorreu nas fazendas de salmão do Chile, devastadas nos últimos anos por infestações de vírus e bactérias.

 

Para tentar conter as perdas, os criadores chilenos deram às criações altas doses de antibióticos e outros medicamentos – aí surgiram outros problemas. Os Estados Unidos embargaram as compras de salmão do Chile depois de detectar níveis de antibióticos até 350 vezes acima do tolerado. Além disso, denúncias de que os produtores alimentavam os peixes com corantes nocivos, para que a carne adquirisse o tom rosado, minaram de vez a credibilidade da aquicultura no país. A produção anual de 650.000 toneladas de salmão foi reduzida em 70%. O governo chileno reconheceu publicamente o erro e prometeu reestruturar seu modelo de aquicultura. O caso se repetiu na Noruega e no Canadá. O problema vem sendo resolvido com restrições mais severas da quantidade de animais por viveiros, mas a ameaça de uma crise persiste.

 

A saúde dos animais tem relação direta com a alimentação, também problemática. Para a aquicultura, recomendam-se rações industrializadas, por vezes consideradas caras demais para criadores de pequeno e médio porte. Uma ração pobre em nutrientes costuma ser mais barata, mas pode causar deficiências nutricionais nos peixes. Há também rações específicas para as necessidades de cada espécie. “Peixes carnívoros precisam de altas taxas de proteínas, mas, se a ração não for rica em proteínas assimiláveis, o nutriente vai ser eliminado nas fezes e sujar as águas do viveiro”, diz Emiko, da Embrapa. A qualidade da água dos viveiros também é um fator crítico.
 


LUXO?

 

O salmão é um dos peixes usados no sashimi, iguaria japonesa ingerida crua, que depende de matéria-prima de outros países. Pragas devastaram fazendas no Chile, no Canadá e na Noruega
Há dois modelos de criação. Os tanques escavados, mais usados no Brasil, e os tanques-redes, que começam a se disseminar no país. O segundo modelo confina os animais em grandes redes em rios, lagos, represas e no mar (a produção brasileira é principalmente de água doce). Nos poços escavados, a água precisa ser renovada e oxigenada constantemente, para evitar o acúmulo de fezes e sujeira. O excesso de matéria em decomposição causa o gosto de barro que os peixes de água doce podem apresentar. O descarte da água depois da retirada dos peixes também pode provocar poluição nos rios. Pelo processo adequado, a água tem de ser repassada a um reservatório para tratamento antes do descarte.

 

Outro aspecto delicado é a escolha da espécie a criar. “A aquicultura precisa de foco, e o primeiro passo para isso é escolher espécies estratégicas”, afirma Emiko. Elas devem ter, entre outras qualidades, boa capacidade de adaptação e engorda, resistência a infecções e sabor agradável. O programa Aquabrasil, da Embrapa, selecionou quatro espécies. Elas devem passar por pesquisas para melhoramento do manejo e depuramento genético, como ocorre com a produção comercial de bovinos, suínos, soja e milho. Os peixes resultantes do trabalho, capazes de engordar mais rapidamente, serão vendidos a criadores e empresas.

 

Pelo plano, as regiões Norte e Centro-Oeste se dedicarão a seus peixes nativos tambaqui e surubim (também conhecido como cachara), respectivamente. No litoral, os estudos se concentram no camarão. Já a tilápia – espécie africana bem adaptada ao Brasil – é a opção para criação em quase todo o país, exceto no extremo sul, por causa do frio, e na Bacia Amazônica, pela sensibilidade do ecossistema. A tilápia representa 28% da produção de pescado nacional e tem grande aceitação no mercado (é o peixe mais consumido nos Estados Unidos).

 

O foco em apenas quatro espécies pode causar estranhamento, dado o grande número de espécies nativas brasileiras, mas tem o apoio de especialistas, como o pesquisador Luiz Ayroza, do Programa de Piscicultura Continental do Instituto da Pesca, de São Paulo. “Primeiro, temos de montar um modelo lucrativo com espécies de alta produtividade”, diz ele. “Quando o setor já estiver estabilizado, poderemos melhorar outras espécies.”

 

Nesse futuro da aquicultura no Brasil, a criação em tanques-redes no oceano, também chamada maricultura, precisará ocupar mais espaço. Hoje, ela representa só 7,5% da produção nacional. Seus casos de sucesso mais convincentes são as criações de mariscos e ostras no sul do país. Com peixes, os poucos projetos existentes trabalham principalmente com o bejupirá, espécie com sabor semelhante ao salmão. Por enquanto, o filé da piscicultura vem de rios e açudes: é o pirarucu, com grande capacidade de engorda – até 10 quilos por ano. Sua carne é considerada uma iguaria. “O pirarucu é o peixe do futuro no Brasil”, afirma o criador Kubitza, sócio da empresa Acqua Genética. O potencial do peixe despertou o interesse da Noruega, referência para a aquicultura no mundo. Uma equipe do país escandinavo virá ao Brasil neste ano estudar o trabalho nacional, em especial com o pirarucu.

 

Se concretizada a promessa do pirarucu, ele acompanhará a trajetória ascendente da aquicultura, que deverá ultrapassar a pesca no Brasil em oito anos, segundo o Ministério da Pesca e Aquicultura. No mundo, isso ocorre agora. Os obstáculos enfrentados na criação, porém, exigem boa dose de ciência e tecnologia, a fim de tornar a atividade lucrativa e limpa. Só isso garantirá que o filé de peixe chegue ao prato com preço razoável e sem o gosto ruim do descuido ambiental.

 


Veículo: Revista Época


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