O orçamento das famílias brasileiras está mais comprometido com o pagamento de dívidas. A fatia do rendimento mensal dos brasileiros destinada ao pagamento de débitos aumentou neste ano, atingindo 25,8% em fevereiro (número mais recente), o nível mais alto da série do Banco Central iniciada em julho de 2006. Depois de passar 2010 inteiro na casa de 24%, a renda ficou mais comprometida neste ano por conta de maiores gastos com juros, que subiram especialmente na esteira das medidas macroprudenciais, que restringiram o crédito, adotadas pelo governo a partir do fim de 2010.
Uma saída adotada pelas famílias para não reduzir o consumo foi alongar o prazo de suas dívidas. Pesquisa da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (Fecomercio) mostrou que, em abril, 34,9% dos paulistas informavam ter débitos com mais de um ano, um percentual superior aos 26,2% do mesmo mês de 2010. "Esse alongamento facilita o consumo, tornando as prestações mais administráveis", resume a economista Fernanda Della Rosa, da Fecomercio.
Como os números - tanto do BC como da Fecomercio - não apontam uma trajetória de alta explosiva, a maior parte dos analistas acredita que isso não será um grande obstáculo à expansão do consumo nos próximos meses, mas há quem discorde. Para quem acredita em demanda ainda forte, a renda em alta, embora mais moderada do que no ano passado, vai estimular o apetite dos consumidores.
A estratégia de alongamento das dívidas, porém, tende a se tornar mais difícil daqui para frente: com a adoção das medidas macroprudenciais, os prazos médios de empréstimos estabilizaram-se nos últimos meses, segundo números do BC, enquanto informações da Associação Nacional dos Executivos em Finanças, Administração e Contabilidade já apontam para redução da duração das operações de crédito - no caso do financiamento de veículos, o prazo médio caiu de 44 meses em novembro de 2010 para 40 meses em abril deste ano, ao passo que o prazo o máximo encolheu de 80 meses para 60.
O alongamento de prazos e o aumento da massa salarial permitiu aos consumidores manter a parcela do rendimento mensal comprometida com dívidas mais ou menos constante, mas o nível de endividamento como proporção da renda anual cresceu. Em fevereiro, ele atingiu 41,3%, também o nível mais alto da série iniciada em 2006, quase três pontos percentuais acima dos 37,4% do mesmo mês de 2010. Esses números do BC são referentes à massa salarial ampliada disponível, que inclui as aposentadorias e os programas de transferências de renda como o Bolsa Família, excluindo as despesas com Imposto de Renda e contribuições previdenciárias.
O economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale, acha esse nível de endividamento normal, acreditando que ele deverá seguir em alta nos próximos anos. "Se for para 60%, é algo mais do que natural", afirma ele, lembrando que o crédito imobiliário, que envolve valores elevados, ainda é pouco expressivo no Brasil como proporção do Produto Interno Bruto (PIB) e hoje está em franca expansão, o que levará a uma expansão mas forte do patamar de endividamento. Vale também não vê problemas no comprometimento de renda mensal, pouco superior a 25%.
Com o mercado de trabalho aquecido, as perspectivas para o rendimento e o emprego seguem promissoras, observa ele. Desse modo, a expansão do endividamento como proporção da renda fica mais controlada. "O crédito no Brasil ainda tem muito para avançar", avalia Vale.
O economista Alexandre Andrade, da Tendências Consultoria, também acredita que esse nível de comprometimento de renda não é preocupante, nem deve ser um grande empecilho à expansão do consumo. Para ele, pode haver alguma "redução do vigor" das compras de bens duráveis (em especial automóveis), por conta das medidas macroprudenciais. Andrade, contudo, não vê uma queda forte do consumo em razão da maior comprometimento de renda com o pagamento de dívidas.
Andrade projeta uma alta de 13,7% do crédito para a pessoa física neste ano, menos que os 20,6% registrados no ano passado, mas ainda assim um ritmo forte. Nesse quadro, o consumo das famílias, principal componente da demanda, deve crescer 5% neste ano, um número bastante robusto. Em 2010, a expansão foi de 7%.
Os números do BC mostram claramente que o aumento do comprometimento de renda se deveu às despesas com juros. Os dados separam os gastos com o principal da dívida dos dispêndios com juros. Ao longo de 2010 e no começo de 2011, as despesas com o principal ficaram em cerca de 10,5%, enquanto os gastos com juros passaram da casa de 13,8% no fim do ano passado para 15,3% em fevereiro deste ano.
Para o economista Douglas Uemura, da LCA Consultores, esse aumento de despesas financeiras se deve principalmente ao efeito das medidas macroprudencais. A taxa das operações pré-fixadas de crédito para a pessoa física, por exemplo, subiram de 39,3% ao ano em novembro de 2010 para 45% em março deste ano.
Uemura tem uma visão um pouco diferente da de Vale e Andrade sobre o impacto da elevação da fatia destinada ao pagamento de dívidas no consumo. Para ele, o efeito pode ser um pouco mais significativo, por se dar num cenário em que a inadimplência também cresce, ainda que não de modo abrupto. Uemura acredita que o comprometimento de renda com débitos deve continuar a subir, já que os juros deverão aumentar mais, até em função do ciclo em curso de elevação da taxa Selic, aliado à redução dos prazos de empréstimos e financiamentos. Essa combinação, segundo ele, tende a diminuir o apetite pelo crédito e, com isso, colaborar para o arrefecimento da atividade econômica.
Veículo: Valor Econômico