A dramática crise financeira e econômica internacional começa a atropelar também o sistema comercial. Governos fazem uma reviravolta na concessão de subsídios industriais para salvar empresas da quebradeira. E haverá impacto na posição competitiva daquelas engajadas no comércio global.
É nesse cenário, na direção oposta da Rodada Doha, que negociadores preparam o terreno em Genebra para ministros barganharem em dezembro as bases de um acordo agrícola e industrial. Saia o que sair de uma ministerial em dezembro, porém, o pacote final de Doha não será assinado antes de 2010.
A crise - que começou com o "subprime"' e a bolha imobiliária, atingiu todo o sistema financeiro e agora a economia real - terá evidente influência nos rumos da negociação de Doha. Primeiro, ela provoca o colapso de vez do Consenso de Washington, que assumia que os mercados como sistema não cometem erros, mas os Estados sim. O modelo econômico keynesiano está de novo na moda. Mas um sistema financeiro e monetário baseado nesse paradigma e em novas regras do jogo ainda está longe de ser acertado.
Segundo, a crise eleva a pressão sobre as regras do comércio. Nos Estados Unidos, dezenas de grandes empresas pedem socorro, que pode chegar a US$ 300 bilhões. Na Europa, o governo francês começou a socorrer a indústria naval, a Alemanha quer abrir os cofres para o setor automotivo, e a lista de demandas cresce em outros países.
A China vê nisso também o reforço de estratégias industriais nacionais e ameaça copiar os americanos e europeus com pacote para sua própria indústria, a começar pela automotiva. O governo da Índia acaba de elevar a tarifa de importação de produtos siderúrgicos. Teme que a China desvie exportações de aço barato para seu mercado, já que a demanda diminui no mercado chinês e nos países desenvolvidos em recessão. O Mercosul quer aumentar até tarifa de pêssego.
Logo veremos reações: países sentindo suas empresas afetadas vão adotar medidas de defesa comercial, com sobretaxas anti-dumping ou anti-subsídios em produtos importados das empresas beneficiadas. E mais disputas vão chegar aos juízes da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Nesse cenário, persiste o ceticismo sobre Doha, tanto entre defensores da rodada como entre os que a combatem. "Vamos na direção de mais nacionalismo econômico e protecionismo, e pouquíssimos governos, como o Brasil, colocam Doha como prioridade", diz Jean-Pierre Lehmann, professor do IMD, uma das principais escolas de administração da Europa e fundador do Grupo de Evian, que promove a economia de mercado.
O professor, que reúne industriais, negociadores de peso e acadêmicos em seu grupo, vê pouco interesse da indústria dos países desenvolvidos pela rodada porque eles acham que ganham pouco ou nada. Ele menciona uma pesquisa pela qual não mais de 10% dos industriais demonstram interesse pela OMC. "O que eles querem mesmo são acordos bilaterais, onde seus setores podem ganhar mais", diz.
Raghavan Chakravarthi, ex-assessor de Indira Gandhi e diretor da Third World Network, nota que se os países não conseguiram acordo em Washington, no encontro de cúpula sobre a crise financeira, apesar da urgência, é ainda menos crível esperar um acordo agrícola e industrial até o fim do ano e fechar o pacote geral no ano que vem. "É fútil pensar que grandes países em desenvolvimento, como China e Índia, serão persuadidos a se comprometer com um acordo, quando a nova administração americana não está."
Para vários negociadores e analistas, tentativas para forçar um acordo no contexto atual pode levar não só ao colapso de Doha, como causar um estrago no próprio sistema multilateral. Mas outros negociadores insistem que precisamente por causa da crise é que a negociação precisa avançar. Na verdade, será mesmo só para dar um sinal positivo ao mercado. Os efeitos da liberalização só serão sentidos dentro de cinco a dez anos.
Uma conferência sobre financiamento ao desenvolvimento, no fim do mês em Doha, já deve ajudar nas barganhas entre ministros que confirmaram presença, como Celso Amorim. Enquanto isso, Pascal Lamy, diretor-geral da OMC, estuda o terreno para decidir se e quando fará a ministerial.
Cotas com a Rússia
O Brasil tenta obter da Rússia a criação de cotas globais para carnes de frango e de porco, em vez de cotas específicas, que até agora beneficiaram basicamente Estados Unidos e União Européia. A negociação deve continuar esta semana com a chegada do ministro russo da Agricultura a Brasília.
Os produtores brasileiros têm razão ao pedir cota global, para desmantelar o tratamento discriminatório contra os produtos brasileiros. Para haver acordo, os russos vão ter de acertar com os EUA e a UE. E aí é outra história.
Assis Moreira é correspondente em Genebra
Veículo: Valor Econômico