Eles são velhos conhecidos da polícia, das secretarias de Fazenda e dos promotores de Justiça. E continuam na praça apesar das medidas adotadas nos últimos anos para barrar o crime no qual se especializaram: sonegação de impostos nas vendas de etanol.
É um negócio que gera prejuízo bilionário aos cofres públicos, cujas quadrilhas têm braços que cruzam Estados e que vêm sofisticando seus modos de operação. Os esquemas prosperaram na última década e, conforme autoridades, envolvem donos de postos, corretores de combustível, distribuidoras de fachada e donos de usinas. Ou seja: todos os atores da cadeia do etanol. Nesse contexto, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) prepara mudanças no segmento para tentar diminuir a margem de ação dos criminosos.
Minas, São Paulo, Goiás e Paraná são alguns dos Estados onde essas quadrilhas têm mais força, segundo o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes (Sindicom), que reúne as multinacionais e grandes companhias nacionais. A entidades calcula que de 20% a 25% do etanol vendido nos postos do país passa por algum esquema de sonegação. A perda para o Fisco é de R$ 1 bilhão a R$ 1,1 bilhão por ano, estima o sindicato. Os cálculos da Fecombustíveis, que representa os postos do país, são ainda mais alarmantes: 30% do etanol vendido no país seria sonegado causando um prejuízo de R$ 1,8 bilhão.
Em Minas Gerais, um dos Estados onde o Ministério Público e o governo têm feito seguidas operações contra essas gangues, as investigações contam com escutas telefônicas e monitoramento de movimentações financeiras e demoram, muitas vezes, meses na coleta de provas.
"Essas redes têm pessoas em São Paulo, Minas, nos Estados do Nordeste", diz o subsecretário da Receita da Secretária de Estado da Fazenda de Minas, Gilberto Silva Ramos. "Estamos lidando com redes que movimentam milhões de reais, cujos mentores conhecem bem o setor e sabem que para irem para a cadeia, o governo precisa achar provas. E sabem que o risco para eles é baixo".
Foi preciso quase um ano de escutas, monitoramento financeiro e investigações para que o MP e o governo mineiro chegassem a uma dessas quadrilhas. Foi na última operação no Estado contra esse tipo de crime, ocorrida em julho. Quando deram o bote, encontraram um esquema que, até aquele momento, havia sonegado cerca de R$ 6 milhões. Isso somente em vendas para postos na região de Campo Belo, Lavras, Cana Verde e Candeias, no sul de Minas.
Segundo o Ministério Público de Minas Gerais e a Secretaria de Estado da Fazenda, os postos chamados de "bandeira branca" tendem a aparecer mais em casos relacionados a esses esquemas. Mas postos de grandes marcas também estão no radar das autoridades mineiras.
Depois de anos à caça dessas gangues, promotores públicos, secretárias de Fazenda, polícia e as empresas que operam legalmente e sentem o peso da concorrência desleal, conhecem de cor e salteado o modo de operação dos criminosos.
O que motiva o esquema é a possibilidade de maiores lucros para os donos de postos. Quem opera corretamente no negócio compra etanol de uma distribuidora. São só as distribuidoras que podem comprar o biocombustível das usinas para revender. Elas se ocupam de transporte e estocagem do produto. Tudo isso têm custos, claro. As distribuidoras são obrigadas a recolher o ICMS delas e dos postos para os quais fornece. As usinas recolhem só o seu ICMS. Até o início de maio, também incidia sobre o etanol o PIS/Cofins, zerado desde então. E, no modelo em vigor, o produto é isento de Cide.
Pelo esquema paralelo, corretores de etanol associados às quadrilhas oferecem aos donos de postos combustível mais barato. Não tem mágica. Os postos acabam comprando direto das usinas. A vantagem? O combustível chega à bomba sem o ICMS da distribuidora e do próprio posto - e, portanto, mais barato.
O Sindicom tem alguns exemplos. Em São Paulo, o total o ICMS cobrado no etanol é de 12%, o que representa R$ 0,23 do preço do litro. Em Minas, 19% (R$ 0,41); no Rio de Janeiro, 24% (R$ 0,56); em Goiás, 22% (R$ 0,44); em Pernambuco, 25% (R$ 0,57); e no Paraná, 18% (R$ 0,38).
Um posto nas capitais compra, em média, 250 mil litros de combustíveis por mês. Em alguns Estados, metade - ou quase isso - de etanol e metade de gasolina. Como a margem de ganho na venda do etanol para os postos é de R$ 0,20 a R$ 030, comprar o combustível mais barato por meio de sonegação é um negócio sempre atraente.
Mas, para dar um aspecto legal a esses esquemas, as chamadas distribuidoras "barriga de aluguel" entram no circuito. São empresas constituídas como manda o figurino. Têm sócios, capital social, sede e emitem nota fiscal. Mas é tudo enganação. Os donos são laranjas e a empresa discrimina, mas não recolhe o ICMS nas notas - nem o dela nem o dos postos. E até ela ser autuada, já se passaram um ou dois anos de funcionamento, diz o promotor de Justiça do Ministério Público Estadual de Minas, Renato Froes. "Quando são descobertas, não temos ninguém para responsabilizar".
A "barriga de aluguel" é a peça-chave das quadrilhas. Dão a fachada legal que os donos de postos precisam. Em alguns casos, duas distribuidoras desse tipo participam da operação, para dificultar o rastreamento. Mas é o dono do posto quem manda buscar o etanol, em caminhões-tanque próprios ou alugados. Quando a usina está próxima ao posto, uma mesma nota é usada para dois ou três carregamentos no dia. Parte das fraudes com etanol ocorre com os donos de postos negociando diretamente com os usineiros.
As fraudes fiscais no negócio do etanol têm também uma faceta tecnológica. De alguns anos para cá, entrou em cena um componente que permite aos donos de postos alterar o marcador digital das bombas. Uma novidade vital para quem compra parte de seu combustível sem nota e precisa deixar registrado nas bombas a apenas a quantidade coberta pelas notas.
Os criminosos são criativos. Na operação que o Ministério Público e o governo fizeram no sul de Minas - a oitava no Estado desde 2009 -, as autoridades encontraram um amostra de variações possíveis do golpe: um caminhão carregado com 30 mil litros de etanol estacionado próximo a um dos postos suspeitos.
Sim, havia nota fiscal e a aparência era de total legalidade, não fosse pelo fato de que no documento constava que o combustível era destinado a uma indústria do Maranhão. Mentira, era álcool para abastecer os postos dali mesmo, segundo Anderson Aparecido Félix, o superintendente de fiscalização da Secretaria de Estado da Fazenda de Minas.
Como se tratava de uma venda para o Nordeste e como era para uma indústria, o ICMS apontado na nota era de 7% e o preço do litro, cerca de R$ 0,50. Mas como a carga iria, na verdade, abastecer aos postos de Minas, o ICMS à época seria de 22% e o valor usado para base de cálculo de cerca de R$ 2. "O ICMS recolhido na nota era equivalente a R$ 1.000, mas deveria ser de R$ 13.200", diz Félix.
A ANP elaborou uma resolução que atualiza os critérios de autorização de atividade das distribuidoras. Entre as mudanças, passará a exigir que o capital social mínimo para a criação de uma empresa desse tipo seja de R$ 2,8 milhões. Pela regra em vigor desde 1999, o valor necessário é R$ 1 milhão. Outra mudança: os donos da distribuidora terão de comprovar a propriedade de pelo menos uma instalação de armazenamento onde operam. A regra atual permite que eles arrendem uma base, o que dá margem, segundo a própria nova resolução da agência, para irregularidades. A resolução está em processo de consulta pública até sexta-feira. Representantes do setor e autoridades fazendárias aprovam as mudanças.
Em abril de 2012, os secretários de Fazenda de Minas, Paraná, Rio, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo assinaram um protocolo para unificar as exigências para operação das distribuidoras.
Em São Paulo, que já vinha adotando outras iniciativas contra os esquemas ilegais, a situação melhorou, mas o mercado não está totalmente regularizado, conforme a Administração Tributária da Secretaria da Fazenda. No ano passado, dos 21 pedidos de abertura de distribuidoras, apenas três foram aceitos.
O governo de Minas também tem atuado contra as quadrilhas. De 2009 para cá, o MP, com o apoio do governo, deflagraram oito operações no Estado contra gangues que já haviam sonegado R$ 77 milhões. Minas está começando a por em prática um sistema piloto que exigirá do setor a confirmação eletrônica de recebimento de pagamento.
Se donos de postos, corretores e distribuidoras tomam, segundo autoridades, parte desses esquemas, o que dizer das usinas? Os empresários têm um bom argumento: não há como saber se a distribuidora "X" - que é devidamente registrada e sobre a qual não consta nenhum protesto - é uma "barriga de aluguel". Mas tanto no governo de São Paulo quanto no de Minas, a leitura é a mesma: quem está no setor sabe muito bem com quem está lidando.
Veículo: Valor Econômico