A nova lei que regula os serviços de comunicação audiovisual na Argentina, em vigência desde o início de setembro, criou um novo foco de atrito com o Brasil. Em meio à briga entre o governo Kirchner e o Grupo Clarín, a chamada Lei de Mídia acabou introduzindo duras restrições à veiculação de publicidade filmada em países estrangeiros nos canais de televisão aberta, que só poderão transmitir comerciais gravados na Argentina e com pelo menos 60% do elenco composto por atores nacionais. As restrições também valem para canais de TV a cabo com emissão no país.
Agências e produtoras de publicidade brasileiras podem ser as maiores prejudicadas, já que boa parte dos comerciais difundidos na América Latina por multinacionais é gravada no Brasil e depois exportada para os demais países. É o caso de campanhas de gigantes como McDonald's, Unilever, Coca-Cola e Procter & Gamble. Para a Associação Brasileira de Produtoras Audiovisuais (Apro), o que está em risco são negócios de R$ 300 milhões a R$ 400 milhões, que correspondem a até 25% do faturamento anual do setor. "Os países estão cada vez mais globalizados e os clientes querendo gastar cada vez menos", afirmou Sônia Piassa, diretora-executiva da Apro. "Por isso, podem querer reduzir custos e concentrar a produção em poucos lugares."
O governo brasileiro acompanha com atenção o assunto e se queixa de que a restrição tem afetado indiscriminadamente todos os países. Nos últimos dias, o presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Manoel Rangel, esteve em Buenos Aires e apresentou uma reclamação às autoridades argentinas. "Entendemos que essa é uma restrição inadequada e uma barreira indevida. Pelo tratado do Mercosul, Brasil e Argentina, assim como Uruguai e Paraguai, têm um compromisso de livre circulação de obras publicitárias entre as suas fronteiras", afirmou Rangel ao Valor.
Descartando qualquer tipo de represália, ele relatou ter encontrado "boa receptividade" nas conversas e garantiu que o Brasil "procurará solucionar a questão pela via do entendimento". "O governo argentino compreendeu o problema e nos assegurou que não é do interesse deles ter qualquer tipo de restrição à veiculação de obras publicitárias brasileiras, mas o fato objetivo é que estamos diante da ocorrência dessas restrições", explicou.
A Lei de Mídia foi aprovada pelo Congresso argentino em 2009, em meio aos ataques cada vez mais ostensivos do governo ao "Clarín". Seus artigos mais polêmicos estipulam que uma empresa não pode ter mais de dez licenças de rádio e televisão com alcance nacional, e nem um canal de TV aberta e outro a cabo em uma mesma localidade. Várias liminares judiciais suspenderam a aplicação do prazo de um ano para o "desinvestimento" dos grupos de comunicação cujas licenças se sobrepõem. Na nova legislação, a parte referente à publicidade ocupa apenas 3 dos 166 artigos. Por isso, a sensação das agências e produtoras brasileiras é de que entraram acidentalmente em um conflito alheio.
A regulamentação da lei, há pouco mais de três meses, suavizou um pouco o texto e abriu uma oportunidade para driblar as restrições. Diz que, para veiculação de obras produzidas no exterior, deve-se levar em conta "as condições estabelecidas por tratados e convênios internacionais", além da existência de "condições de reciprocidade para a difusão de conteúdos audiovisuais publicitários". Desde então, algumas grandes campanhas publicitárias para a América Latina já deixaram de ser produzidas no Brasil e foram filmadas na Argentina. É o caso, de acordo com a Apro, da nova peça rodada pelo McDonald's. A diretoria de comunicação da rede de lanchonetes não respondeu ao pedido de entrevista do Valor até o fechamento desta edição.
A Câmara Argentina de Anunciantes, que reúne os principais clientes das agências e produtoras, enviou um pedido de informações à Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca), órgão criado para monitorar o cumprimento da Lei de Mídia. "Pedimos uma lista dos países enquadrados nessas condições de reciprocidade. Enviamos a solicitação no dia 28 de setembro, mas não recebemos resposta", disse o diretor-geral da câmara, Philip Pérez. "Explicamos que o objetivo da lei, se era proteger o mercado local, provavelmente não ia ser alcançado. A Argentina exporta muito mais comerciais do que importa. E, aplicando uma medida protecionista, corre o risco de receber represálias, além de empobrecer sua criatividade." Procurada pela reportagem, a Afsca não se pronunciou.
O Brasil não tem nenhuma restrição para a veiculação de publicidade estrangeira. A única diferença em relação às produções nacionais é o valor do Condecine, a taxa cobrada para financiar o desenvolvimento da indústria cinematográfica. No caso da produções brasileiras, a taxa é de R$ 1,5 mil por filme, enquanto o valor sobe para até R$ 80 mil para as estrangeiras.
Veículo: Valor Econômico