Se o Banco Central (BC) não está preocupado com a dívida das famílias, não parece haver motivo para que as próprias famílias e os cidadãos comuns estejam. Despreocupados, os consumidores estão menos cautelosos do que no ano passado com o tamanho de sua dívida, os custos dos serviços financeiros e os preços em geral. Curiosamente, nesse ambiente de grande otimismo com relação à situação financeira das famílias, a advertência parte do setor que, teoricamente, mais se beneficia com as facilidades do crédito para o consumo: o comércio.
"O Banco Central está mais tranquilo do que deveria estar", disse o presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL), Roque Pellizzaro Junior, ao comentar os dados do comércio varejista e da inadimplência no primeiro semestre de 2011. Pellizzaro se referia à declaração feita pelo presidente do BC, Alexandre Tombini, em depoimento na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, de que o endividamento das famílias está entre 24% e 25% de sua renda, índice próximo do que ele considera recomendado internacionalmente. Tombini disse também que "o BC vai estar sempre atento a esse processo".
Para o presidente da CNDL, mais do que simplesmente acompanhar a situação, o BC já deveria ter agido, adotando medidas mais efetivas para reduzir a dívida das famílias. "Até 20% (de dívida), as pessoas navegam muito bem", disse Pellizzaro. "Passou disso, fica-se sujeito a riscos", completou, pois qualquer desarranjo orçamentário, desemprego, sinistro ou doença pode criar desequilíbrios.
Além de ter alcançado um nível acima do recomendado pela prudência, o endividamento cresce também para o pagamento de juros, e não para a compra de bens e serviços, observou o dirigente lojista. Pesquisas têm indicado, de fato, que nos últimos meses cresceu a fatia dos juros na composição da dívida das famílias. Ou seja, contrai-se nova dívida para pagar dívida anterior, não para a compra de bens ou serviços.
Quanto às medidas adotadas pelo governo para conter o consumo e reduzir as pressões inflacionárias, seus resultados até agora têm sido desprezíveis. O varejo não sentiu o impacto das medidas, pois continua aquecido, segundo a CNDL. Sobretudo no comércio de bens de menor valor, a ação do governo "foi inócua", na avaliação de Pellizzaro.
Os números não deixam dúvidas sobre a persistência do aquecimento do consumo. No primeiro semestre de 2011, as vendas do comércio cresceram 5,05% em relação à primeira metade de 2010. Em junho, elas foram 8,66% maiores do que as de junho do ano passado.
A boa situação do mercado de trabalho, que tem assegurado a melhora da renda de boa parte dos trabalhadores, e a ampla oferta de crédito, embora a taxas maiores do que no ano passado, têm provocado um certo relaxamento do consumidor na administração de seu orçamento, como constatou uma pesquisa feita pela Federação do Comércio do Rio de Janeiro. Ele sente que sua situação financeira está mais confortável e, por isso, está menos interessado em pesquisar preços e aferir custos financeiros. Neste ano, por isso, cresceu o número de pessoas que não sabem quanto gastam com tarifas bancárias, não pesquisam preços à vista, nem se preocupam com o nível de juros para fazer compras a prazo.
Em abril deste ano, mês em que foi feita a pesquisa, a fatia dos entrevistados que não sabiam o custo das tarifas bancárias alcançou 63%, contra 60% em 2010. No ano passado, 82% dos entrevistados pesquisavam os preços à vista antes de decidir pela compra à prestação; neste ano, o índice caiu para 68%.
É uma situação favorável para o comércio, como mostram os números das vendas do varejo, mas que, se resultar em aumento crescente do endividamento das famílias, com uma dívida de pior qualidade - cada vez mais contraída para pagar juros de dívidas anteriores e cada vez menos para ampliar o consumo e a produção -, imporá perdas generalizadas, inclusive ao comércio lojista, cujas vendas cairão. Daí a compreensível preocupação da CNDL, que ainda não é compartilhada pelo BC.
Veículo: O Estado de S.Paulo