Antes de chegar ao trabalho em uma clínica na Ilha do Leite, no centro do Recife, o recepcionista Vinícius Lopes tem por hábito comprar o lanche da tarde. A opção da sexta-feira foi um pacote de biscoitos recheados de chocolate e uma lata de refrigerante, mas poderia ter sido rocambole, pão de mel, torradas, doce de amendoim e até macarrão instantâneo. Concentrado e usando fones de ouvido, Vinícius levou alguns minutos para se decidir diante das muitas possibilidades expostas em uma gôndola estrategicamente posicionada ao lado do caixa da F armácia Independente, rede pernambucana com dez filiais.
Tímido, o rapaz disse que pagaria mais caro pelos biscoitos do que em um supermercado, mas alegou a maior conveniência da farmácia, próxima ao seu local de trabalho. Na capital pernambucana, quase toda farmácia funciona também como loja de conveniência, onde se pode encontrar uma infinidade de produtos teoricamente estranhos ao ambiente dos frascos e comprimidos. A clientela, diferente de órgãos federais como Anvisa e Procuradoria-Geral da República, parece não ver problemas. Nas três farmácias visitadas pelo Valor, os gerentes informaram que as vendas de não medicamentos são cerca de 30% do faturamento.
Em frente à Farmácia Independente fica a Big Ben, rede paraense controlada pela Brasil Pharma, cujas filiais se multiplicam rapidamente pelo Recife. A loja visitada pelo Valor tem uma gôndola exclusivamente dedicada a chocolates, biscoitos e outras gulodices. Ao lado do caixa, uma geladeira de sorvetes Kibon, da Unilever, e outra com grande variedade de bebidas, entre sucos, energéticos e achocolatados. Não há bebidas alcóolicas. Em outras unidades da Big Ben na cidade os clientes podem encontrar, ao lado das aspirinas, smartphones.
Esse tipo de mix não é exclusividade do Recife. No Pará, a rede Big Ben, chegou a ser a maior vendedora de CDs do Estado. Produtos como TVs, computadores e celulares estão entre os mais vendidos.
As seções dedicadas aos alimentos ficam, geralmente, próximas aos caixas, a fim de atrair a atenção de quem está em busca de remédios. Na Farmácia Independente, além da variedade de alimentos, ficam no entorno dos caixas perfumes importados, barbeadores elétricos, meias, pilhas, pincéis de maquiagem e suportes para sutiã. "Esses produtos têm muita saída", diz Maria do Carmo, gerente da loja.
Na rede Pague Menos, a estratégia é parecida. Logo na entrada da loja no Recife, do lado esquerdo, ficam bolas de futebol e boias de piscina. No outro extremo, uma estante da Elma Chips exibe farta variedade de salgadinhos. "Sempre que eu venho com criança, acabo comprando algum salgadinho ou sorvete", diz a dona de casa Maria José do Nascimento, enquanto a filha escolhe a guloseima. A loja também tem uma gôndola exclusiva para chocolates e biscoitos e quatro refrigeradores, sendo dois para refrigerantes, um para sorvete e um só para água de coco.
O gerente Mário Lima Neto diz que os alimentos são 10% do faturamento. Perfumes ficam com 20% e o restante "é medicamento mesmo". Ele destacou o desempenho da "área VIP", ao fundo da loja, que abriga estantes de marcas internacionais de bloqueadores solares, cremes antirrugas e pílulas de colágeno. Tanto a Pague Menos quanto a Farmácia Independente dispõem de área VIP em suas lojas.
Maria do Carmo diz que cresce o pagamento feito com cartões de benefício, que concede descontos ou debita a conta na folha salarial. Vinícius pagou pelo lanche com um desses cartões. Recentemente, uma empresa conhecida no Recife advertiu os funcionários que o plástico só deve ser usado na compra de remédios. Muita gente aproveita o desconto de 25% do benefício para fazer na farmácia parte das compras normalmente feitas no supermercado.
STF vai decidir sobre o que pode ser vendido
A disputa sobre a possibilidade de venda de produtos de lojas de conveniência em farmácias chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde a Procuradoria-Geral da República fez um parecer sobre o assunto e proibiu os Estados a autorizar a comercialização de vários itens.
Pela lista do Ministério Público Federal (MPF), as farmácias não poderiam vender: bebidas lácteas, cereais matinais, artigos para bebê, isqueiros, colas, cartões telefônicos, filmes fotográficos, balas, doces e barras de cereais.
A posição da Procuradoria-Geral da República consta de ação direta de inconstitucionalidade proposta por José Serra, quando ele era governador de São Paulo, em junho de 2008.
Na época, Serra vetou a Lei nº 12.623, que havia sido aprovada um ano antes pela Assembleia Legislativa. O veto foi rejeitado pela Assembleia, o que fez com que o governador recorresse ao Supremo Tribunal Federal (STF).
No STF, o caso foi para as mãos da então ministra Ellen Gracie. Ela pediu vários pareceres sobre o assunto. Num deles, o então procurador-geral Antonio Fernando de Souza fez uma diferenciação entre farmácias e lojas de conveniência.
Segundo Souza, as primeiras podem vender drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e "correlatos". O procurador recorreu à Lei Federal nº 5.991, de 1973, para definir o que são correlatos. Ele concluiu que esses produtos são: os relativos à defesa e proteção da saúde individual ou coletiva, à higiene pessoal ou de ambientes, além de cosméticos, perfumes e dietéticos.
Com base nisso, o Ministério Público Federal manteve a autorização para a venda de outros produtos em farmácias, como leite em pó, meias elásticas, cosméticos, água mineral, produtos ortopédicos, de higiene pessoal, dietéticos, repelentes e mel.
O parecer foi feito antes de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentar o conjunto de produtos permitidos em farmácias.
Pela Resolução da Diretoria Colegiada nº 44 e através da Instrução Normativa nº 9, de 2009, a Anvisa autorizou a comercialização de drogas vegetais, cosméticos, perfumes, produtos de higiene pessoal, mamadeiras, chupetas, lixas de unha, alicates e barbeadores.
No ano seguinte, em 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou a venda de produtos que não possuem relação com a saúde, os chamados artigos de conveniência.
Para a Anvisa, a decisão do STJ vale apenas para as partes envolvidas na ação do STJ, a Associação Brasileira de Rede de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) e a Federação Brasileira das Redes Associativas de Farmácias (Febrafar).
Ao Valor, o presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Dirceu Barbano, disse que a agência pretende discutir essas "distorções" do conceito de farmácia no país. "A sociedade brasileira tem uma visão americanizada, que vê farmácia como loja de conveniência." A Anvisa, observou, está amparada na lei, mas ele entende que há situações diferentes em vários Estados, amparadas por liminares e legislações locais.
Ao fim, o que vai prevalecer no país será a posição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto. O caso está sob a relatoria da ministra Rosa Weber, que sucedeu Ellen Gracie no tribunal.
Desde que assumiu o cargo no STF, em 19 de dezembro de 2011, Rosa não fez qualquer movimentação no processo.
Quando ela o fizer e levar o caso para a pauta da Corte, o mercado vai começar a obter uma resposta definitiva do Judiciário sobre o que pode e o que não pode ser vendido nas farmácias.
Veículo: Valor Econômico