Cerco à imitação

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Seja na moderna e rica São Paulo, na quase isolada Salgueiro, no meio do sertão pernambucano, ou em Brasília, é quase impossível não esbarrar em uma banquinha improvisada de papelão vendendo CDs e DVDs de softwares, filmes ou jogos piratas. Nos quatro cantos do país, lojas estabelecidas comercializam, sem cerimônia, bolsas falsificadas com marcas de alto luxo, como Prada, Louis Vuitton ou Dolce & Gabbana. E, claro, na porta de qualquer estádio de futebol, cópias quase perfeitas das camisas dos maiores times do Brasil e do mundo são oferecidas com naturalidade. A pirataria e a falsificação se integraram de forma profunda e arraigada ao cotidiano brasileiro nas últimas duas décadas. Hoje, para uma parte considerável da população, adquirir esses produtos simplesmente deixou de ser um ato passível de condenação moral. Tornou-se, apenas, uma entre tantas opções de consumo.

Apesar de sua onipresença, ninguém sabe a dimensão que a pirataria tem na economia brasileira. Não há levantamentos que consigam apurar o tamanho do rombo fiscal que esses produtos causam ou mesmo o prejuízo que as empresas sofrem. Todos os números que tratam do problema no país são, basicamente, estimativas mal amparadas. "Temos que admitir que nós não temos ideia do tamanho da pirataria no Brasil", diz o presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP), Flávio Caetano, que também é secretário da Reforma do Judiciário, do Ministério da Justiça. "Não temos nenhuma base confiável para dar qualquer número referente a esse problema, só sabemos que ele é grande."

Hoje o único dado usado pela indústria e pelo governo é o volume de apreensões da Receita Federal, que no ano passado superou, pela primeira vez, a casa dos R$ 2 bilhões. Mas a própria Receita não sabe exatamente o quanto destes números se referem às falsificações ou cópias ilegais, já que as apreensões são referentes a contrabando, descaminho e pirataria, sem a discriminação de cada item.

"Fala-se em algo como R$ 40 bilhões apenas em prejuízos fiscais, mas a verdade é que esse número ainda é aleatório", diz Edson Luiz Vismona, presidente do Fórum Nacional de Combate a Pirataria, uma entidade financiada por empresas vítimas de falsificação, como Adidas, HP, e Souza Cruz, para fazer lobby de sua causa junto ao governo, o Congresso e a opinião pública.

Por conta desse apagão de dados, o governo decidiu que uma das principais prioridades no 3º Plano Nacional de Combate à Pirataria, que está em seus momentos finais de gestação, será, finalmente, descobrir a verdadeira dimensão dos produtos falsificados na economia brasileira. Por meio do CNPC, o órgão ligado ao Ministério da Justiça que conta com a participação da indústria e da academia, uma ampla pesquisa será produzida. A ideia é atacar em duas frentes. Uma buscando dados ligados a apreensões em todo o país e outra procurando entender os hábitos de consumo do brasileiro. "Não se consegue desenvolver políticas públicas eficientes sem informações de qualidade, por isso decidimos que uma radiografia completa da pirataria é uma prioridade", diz Flávio Caetano, do Ministério da Justiça e do CNPC.

Aos olhos dos EUA, o país que mais pressiona o governo a adotar medidas mais duras no combate à pirataria, o Brasil tem avançado na questão. Há pelo menos cinco anos os americanos deixaram de ameaçar aplicar sanções comerciais milionárias se medidas eficazes não fosse tomadas. No entanto, o Brasil ainda figura em uma espécie de lista de observação, na prática um degrau anterior. Em sua companhia estão países pobres, como Bolívia, Bielorrússia e Jamaica, e também nações ricas, como Finlândia, Itália e Noruega. "Eles reconheceram que há um esforço para reduzir o volume de produtos pirateados, mas ao mesmo tempo entendem que há muito a ser feito", diz o ex-embaixador brasileiro em Washington, Roberto Abdenur, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO).

O ETCO, instituto formado por grandes empresas como Ambev, Coca-Cola e Microsoft, por exemplo, para fazer lobby contra a informalidade, tem sido um dos agentes mais atuantes nesse processo. Cabe a Abdenur e sua equipe gerenciar um programa que vem sendo responsável por apreensões de vulto, apesar de as ações ainda serem muito pontuais. Criado no CNPC, o Cidade Livre de Pirataria tem como principal objetivo conseguir integrar os órgãos de fiscalização e repressão para que atuem principalmente na esfera municipal. "A ação coordenada, com todos os agentes falando a mesma língua e com o mesmo objetivo, tem se mostrado o modelo mais eficaz nesse combate", diz Abdenur.

Os números de São Paulo, a primeira das seis capitais que integram o programa, são de fato superlativos. Apenas entre dezembro de 2010 e outubro de 2012 foram apreendidos mais de R$ 2 bilhões apenas na capital, o mesmo volume financeiro apreendido pela Receita no ano passado. Ao todo, mais de 75 milhões de unidades de produtos falsificados ou pirateados foram recolhidos das ruas. Vários shoppings que abrigam lojas especializadas em vender produtos irregulares foram fechados, ainda que temporariamente. "Houve uma redução considerável no volume de produtos piratas ao longo do ano passado", diz Márcio Guimarães Gonçalves, da IPC, consultoria especializada em propriedade intelectual.

Apesar de apresentar resultados positivos, a experiência paulistana também mostra que o combate à pirataria é quase uma tarefa tão árdua quanto enxugar gelo. Poucos meses após o ímpeto fiscalizador ter arrefecido, o volume de produtos pirata e falsificados voltou aos níveis anteriores. De acordo com Abdenur, do ETCO, cabe à prefeitura coordenar o trabalho de fiscalização. "Esperamos que essa administração mantenha o empenho da anterior", diz o ex-embaixador.

São Paulo, no entanto, é uma exceção. As outras capitais envolvidas no projeto - Vitória, Rio, Curitiba, Brasília, Belo Horizonte e a cidade de Osasco (SP) - ainda não conseguiram apresentar os mesmos resultados. A partir de agora, serão integradas ao projeto Porto Alegre, Cuiabá, Fortaleza, Manaus, Recife, Natal e Salvador, cidades sede da Copa do Mundo.


Preços altos impulsionam demanda por cópias ilegais

Nos dias 4 e 5 de dezembro de 2012, mais de cem mil pessoas pagaram entre R$ 170 e R$ 500 para assistir ao show da pop star americana Madonna no estádio do Morumbi, em São Paulo. Era uma das últimas apresentações da turnê MDNA, na qual Madonna já havia se apresentado mais de 80 vezes ao redor do mundo. Já se sabia que a tour da cantora fora um sucesso. Quando se fecharam as contas, no início de janeiro, houve a confirmação: a turnê de Madonna não foi só a mais lucrativa de 2012 como também passou a figurar como uma das dez mais rentáveis de toda a história da música.

Em um momento em que a indústria fonográfica continua sua cruzada contra a pirataria, acusando grupos criminosos organizados de campanhas orquestradas para roubar seus direitos autorais, os números da MDNA não chegam a impressionar quem conhece este mercado. Entre as dez maiores rendas de turnês da história, de acordo com o ranking elaborado pela revista americana "Billboard", apenas a série de concertos dos Rolling Stones Vooddo Lounge é de um tempo em que a indústria fonográfica não havia iniciado sua guerra contra a pirataria.

Os números mostram que o mercado de comércio de cópias, sejam eles piratas, como no caso da música, ou falsificados, como no caso de produtos de bens de consumo, como roupas e calçados, podem ter um outro lado que não seja exatamente negativo. "Mais do que um ato criminoso, a pirataria, principalmente a de bens culturais, é muito mais um ajuste de preço", argumenta o professor de políticas públicas da Universidade de São Paulo, Pablo Ortellado, que também é membro do Conselho Nacional de Combate à Pirataria. "Muitos desses produtos têm um preço incompatível com a renda média da população, por isso a pirataria tem um enorme efeito de divulgação em regiões nas quais o artista não pode ser consumido pelos meios oficiais."

Para Ortellado, a questão é muito mais complexa do que se apresenta. "A indústria procura criminalizar, mas há um componente importante no qual ela não toca: a política global de preços", diz ele. Como a maioria das empresas globais opta por não adequar seus preços a diferentes mercados, as realidades econômicas regionais têm impacto no custo final ao consumidor. "Existe uma clara preferência em explorar os mercados americano e europeu em detrimento dos países em desenvolvimento", diz o professor, que recentemente fez um estudo avaliando o volume de perdas da indústria musical no Brasil, no qual concluiu que os números apresentados são "chutes, sem embasamento".

Um amplo estudo sobre pirataria publicado em 2011 pelo Conselho de Pesquisas em Ciências Sociais, fundação de pesquisas americana, mostrou o valor de um mesmo software em diferentes países, de acordo com a paridade do poder de compra. Enquanto um pacote Microsoft Office 2007 nos EUA era vendido a US$ 149, no Brasil, por exemplo, seu valor equivalente seria de US$ 621. Na Índia, onde o PIB per capita não chega a US$ 4 mil (contra US$ 11,8 mil no Brasil e US$ 49,9 mil nos EUA), o preço do software, sempre respeitando a paridade do poder de compra, chegava a US$ 4,5 mil.

É por questões como essas que a professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing, Suzane Strehlau, não acredita em um arrefecimento do mercado de produtos piratas e falsificados. Ela é autora de uma tese de doutorado sobre mercado de luxo e pirataria e chegou à conclusão de que o consumidor utiliza uma estratégia de enfrentamento ao comprar um bem falsificado. "Ele sabe que é pirata, não está sendo enganado, exceto em casos de remédios e produtos alimentícios", diz Suzane. "Ele simplesmente diz: o original é caro demais, e é esse que posso pagar."

Suzane acredita que em alguns segmentos, como os de alto luxo, começa a haver um claro distanciamento entre o produto e a marca em si. "As bolsas vendidas com plaquinhas de marcas famosas não existem originalmente, o consumidor as compra por conta do status da grife", diz ela.



Veículo: Valor Econômico


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