Comércio especializado se organiza espontaneamente e lojas exploram as vantagens de estar ao lado do concorrente
Júlia Lewgoy
Um começa primeiro, cria o seu ponto e atrai a clientela. O outro vê que a quitanda está dando certo e se aprochega. Quando outros se aproximam, a vizinhança de concorrentes passa a ser um ponto compartilhado, lembrado pelos consumidores. Os comerciantes vendem o mesmo tipo de mercadoria ou serviço, lado a lado, e optam por isso espontaneamente, sem o planejamento de órgãos públicos ou de instituições privadas. A lógica por trás dos polos de comércio especializado, os chamados clusters do varejo, é simples e quase intuitiva: já que a concorrência existe de qualquer jeito, estando perto ou longe, é melhor utilizá-la a favor do negócio.
Os exemplos em Porto Alegre vêm facilmente à memória: os bares e restaurantes na rua Padre Chagas e na Cidade Baixa, as concessionárias de veículos nas avenidas Ipiranga e Assis Brasil, o comércio de luminárias na rua São Pedro, as lojas de eletrônicos na avenida Alberto Bins, as óticas da rua General Vitorino e por aí vai. Um dos mais antigos clusters de varejo da Capital é o polo de autopeças da Azenha. Só na primeira quadra, são 13 lojas de acessórios para carros, sem um sequer respiro entre um estabelecimento e outro, além dos amontoados de autopeças nas ruas transversais e nas quadras seguintes.
Antonio Roslank é comerciante na região há 50 anos: 10 como funcionário e 40 como proprietário da Borrachas Azenha e da Roslank Autopeças. Para ele, explicar como o polo começou não é tarefa fácil, pois quando iniciou no segmento, a Azenha já era conhecida como a rua das autopeças em Porto Alegre. “O nicho foi se qualificando, já que os ruins fecharam e os bons ficaram”, sintetiza. A lista de acessórios vendidos por Roslank parece não ter fim: são amortecedores, pneus, surdinas, lâmpadas, pastilhas, rodas, catalizadores. Mas, mesmo assim, ele justifica facilmente a presença da concorrência: “Eu tenho tudo o que eu posso ter, mas eu não tenho tudo”.
Uma de suas vizinhas, a MG Peças e Acessórios, está na Azenha há 25 anos, motivada pelo sucesso do polo. “Como em qualquer outro mercado, a concorrência é válida. Temos a vantagem de poder negociar para melhorar o orçamento dado pelo vizinho para conquistar o cliente”, conta Eduardo Gomes, da segunda geração da família administradora da loja.
Ter contato com as outras lojas é justamente um dos benefícios de estar perto do adversário, pois permite regular os valores conforme a vizinhança. Para o consumidor, os polos de comércio especializado oferecem a oportunidade de pesquisar produtos e preços para negociar antes de decidir a compra. Na Azenha, Gomes conta que, quando uma loja não tem a peça específica que o consumidor procura, costuma indicar um vizinho para ajudar seu freguês. Ou seja, quem está próximo não é um inimigo.
A compreensão de que atuar ao lado do adversário não seria nocivo às vendas surge da intenção de atender às necessidades dos consumidores. “Se o cliente for em um local que só tem uma loja e não achar o que deseja, ele provavelmente não voltará. Mas, se ele encontrar na loja próxima, lembrará que a área resolveu o seu problema e provavelmente retornará”, resume o presidente da Associação Gaúcha para Desenvolvimento do Varejo (AGV), Vilson Noer. Assim, nasce o elo de identificação com um nicho de varejo especializado, que se multiplica.
A formação dos clusters comerciais não é exclusividade da contemporaneidade, como ressalta o mestre em Administração Roberto Salazar, diretor do curso de Administração da ESPM-Sul. Nas origens do comércio, no século XVII, os mercadores de sedas, porcelanas e especiarias das Companhias das Índias Orientais já utilizavam o recurso de se colocar lado a lado para chamar a atenção da clientela.
Os polos de comércio segmentado também não são uma invenção brasileira. Entre os clusters de varejo mais famosos do mundo, estão as ruas do Triangle d’Or, em Paris, com suas butiques de luxo, e a Portobello Road, no bairro de Notting Hill, em Londres, que concentra antiquários. “Respeitando as características de cada época e de cada lugar, a formação dos clusters é histórica e há muito tempo é utilizada para favorecer o desenvolvimento dos negócios”, lembra Salazar.
Economia de aglomeração regula o valor dos espaços
O varejo nas ruas especializadas em Porto Alegre resiste às transformações. É preciso lidar não apenas com a construção de shopping centers e a expansão de vendas por meio da internet, mas também com os custos que envolvem a operação, como o custo do espaço urbano, que se modifica conforme o ritmo e os hábitos de vida das pessoas.
Hoje, o fluxo intenso e rápido das cidades e as dificuldades de deslocamento fazem com que consumidores se beneficiem das atividades concentradas em ruas e bairros, que permitem uma oferta de melhor infraestrutura. “Assim, tanto o mercado quanto os compradores são amparados pela chamada economia de aglomeração, quando atividades econômicas se concentram em um espaço geográfico segmentado”, diz a arquiteta e urbanista Izabele Colusso, mestre em Planejamento urbano e regional e professora da Unisinos e do IPA.
É a economia de aglomeração que explica por que o valor do solo na avenida Ipiranga, por exemplo, se torna maior à medida que o polo de móveis avança. Há 30 anos, era possível abrir um pavilhão na Ipiranga por um valor mais baixo do que uma loja pequena no Centro. Conforme o nicho foi se formando, no entanto, o preço da compra ou de um aluguel de um imóvel junto às outras lojas tornou-se mais caro.
Essa cotação do espaço urbano interfere diretamente na criação de um nicho de comércio especializado. Hoje, a disponibilidade de terrenos grandes e a formação de uma espécie de corredor, por onde muitas pessoas passam diariamente, chama a atenção dos varejistas na Ipiranga e em outros locais, como a avenida Assis Brasil.
Do ponto de vista do urbanismo, a formação de nichos de varejo isolados e segmentados pode trazer insegurança à cidade. “Durante o dia, a área das lojas especializadas tem vivacidade, com muita gente circulando. Mas, à noite, a região se torna insegura”, explica Izabele. Um polo especializado em Porto Alegre em que isso não acontece é a rua Padre Chagas, já que os prédios concentram residências junto a bares e restaurantes, proporcionando uma sensação de segurança durante o dia e a noite.
A forma como nascem os nichos de varejo nos centros urbanos é espontânea. Se for do interesse da cidade, no entanto, as prefeituras podem incentivar que os polos de comércio continuem vivos.
Foi o que aconteceu, por exemplo, com os antiquários do Centro de Porto Alegre, nas ruas Marechal Floriano Peixoto, Demétrio Ribeiro, Coronel Genuíno e Fernando Machado. A concentração das lojas de antiguidade surgiu despretensiosamente, mas a prefeitura, em parceria com a comunidade, por meio do projeto Viva o Centro, desenvolveu o Caminho dos Antiquários. O projeto incluiu a revitalização da área e a realização de uma feira a céu aberto, aos sábados.
A organização dos polos de um segmento do varejo se baseia, paradoxalmente, na desordem. “Quando existe algum tipo de organização em comum entre as lojas, não é um cluster, mas um centro comercial”, explica o presidente da Associação Gaúcha para Desenvolvimento do Varejo (AGV), Vilson Noer. A formação do núcleo costuma ser decorrência do sucesso do primeiro estabelecimento. Quando um dá certo, os outros vão atrás, mas as lojas dificilmente têm algum tipo de cooperação coletiva. “Na teoria, podem existir negociações, embora, na prática, é muito difícil que isso aconteça. Na maioria dos casos, os interesses individuais valem mais do que as redes de cooperação”, acrescenta Roberto Salazar, diretor do curso de Administração da ESPM-Sul.
Representante do nicho de pizzarias paralelas na avenida Plínio Brasil Milano, Ivair Maynart, proprietário da Don Vitto, considera que, mesmo os produtos sendo os mesmos nas aparências, nenhum é igual ao outro. Assim, cada pizzaria fideliza seus clientes pela pizza que oferece: massa fina, mais molho, rodízio com batata frita, bufê de saladas e assim por diante. Primeira pizzaria na localidade, a Don Vitto se instalou na avenida para aproveitar o movimento de convergência das cidades vizinhas. Maynart conta que o ponto trouxe vida à região e que convive bem com seus vizinhos. De vez em quando, eles até batem na porta para pedir um bocado de queijo que faltou.
O processo de consolidação é longo. Segundo Noer, um polo segmentado leva em torno de cinco anos, no mínimo, para ser caracterizado como um cluster. Por ser uma agregação de lojas que começa sem um plano estabelecido, um nicho comercial não tem previsão de quanto tempo pode durar. A operação, portanto, corre mais riscos de não sobreviver a longo prazo do que um shopping.
Ousadia dos consumidores ou mudanças na estrutura das cidades podem ser motivos para nichos de comércio migrarem de um lugar para o outro. No polo de revendas de carros usados na Assis Brasil, por exemplo, o sócio da RD Veículos Danilo Barros vem percebendo que a construção de um prédio alto ao lado de sua loja e a dificuldade de estacionamento estão afastando os clientes. Por isso, o estabelecimento deve se mudar, em breve, para a avenida Sertório, onde Barros percebeu o começo da formação de um novo polo de revendas de veículos usados. Ele faz questão de continuar em um lugar onde os clientes costumam frequentar para fazer pesquisas de mercado, mesmo motivo que o fez abrir o comércio na Assis Brasil, há 25 anos.
O nicho de carros usados na zona Norte começou a partir do sucesso de uma das primeiras lojas, a Telmo Barcellos, há 50 anos na Assis Brasil. Maurício Barcellos, gerente do estabelecimento, conta que a família abriu o negócio no local, porque o terreno era grande para expor os carros no pátio da frente, formando uma espécie de vitrine, como é até hoje. Barcellos acredita que, para sobreviver no mercado de carros usados, é preciso criar uma relação de confiança com os clientes. Por isso, não teve medo da acumulação da concorrência ao redor.
Diferenciais ajudam a enfrentar a concorrência
Para estar entre os concorrentes, é preciso investir em diferenciais competitivos básicos do varejo: boa iluminação e exposição dos produtos, comunicação adequada, promoções relâmpagos e atendimento de qualidade. Segunda loja mais antiga no nicho de móveis planejados da Ipiranga, a 7.200 aposta em móveis sofisticados e em fabricar peças “verdadeiramente sob medida”, em que a serra só é utilizada para ajustes mínimos, garante o proprietário, Diou Bitencourt. O ponto é tão marcante que até o nome da loja se refere à sua localização. “Se eu fosse fazer o mesmo produto que os outros fazem, estaria fadado a falir, como já vi acontecer por falta de estratégia”, defende Bitencourt.
Sua concorrente, a Moda Casa, primeira loja de móveis planejados no nicho na Ipiranga, aposta em qualificação. “Precisamos nos comparar com a concorrência para melhorar a qualidade”, argumenta o gerente, Carlos Utz. Ele acredita que, se tivesse metade dos concorrentes, venderia menos, e aponta que há questões inevitáveis de serem copiadas, como o horário de funcionamento. “As lojas foram incorporando o horário sem combinar, e ninguém questiona”, conta.
A butique Casa Brasileira foi a última das 48 lojas de móveis a se instalar no polo, no ano passado. “Decidi pela Ipiranga por acreditar que é aqui que o consumidor vem quando precisa mobiliar a casa”, explica o proprietário, Marçal Cremonese. O empresário fez orçamentos e estima que o custo de ter uma loja de móveis junto às concorrentes na Ipiranga é cerca de 30% maior do que na zona Norte, na avenida Sertório. Mesmo assim, aposta que o investimento no local vale a pena.
Veículo: Jornal do Comércio - RS