O pequeno que incomoda

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Ao se tornar o laboratório mais inovador do Brasil, o Cristália virou uma dor de cabeça para as grandes multinacionais

 

Pode-se dividir a indústria farmacêutica em duas grandes categorias. A primeira corresponde às empresas capazes de investir bilhões de dólares em novos medicamentos. A outra, às que se restringem a produzir cópias. São negócios completamente diferentes entre si -- embora o produto final seja muito parecido. Aos laboratórios brasileiros, historicamente, restou a segunda opção. Sem recursos e sem escala para investir no risco da descoberta de novas moléculas, eles se transformam em seguidores e lutam pela sobrevivência na arena do preço.

 

Em meio a esse cenário, o Cristália, com sede em Itapira, no interior de São Paulo, chama a atenção pelo caminho que escolheu. Ele é hoje, a despeito de seus resultados futuros, o laboratório nacional mais inovador do Brasil. O momento da virada começou em outubro de 2007, quando o Cristália estreou no pulsante mercado de disfunção erétil com o lançamento do Helleva, primeiro medicamento desenvolvido de uma molécula inteiramente sintetizada no Brasil. Com faturamento de 555 milhões de reais em 2008, o Cristália ocupa um modesto lugar entre os 20 maiores do país. Mas hoje possui 7% de participação no mercado inaugurado pelo Viagra, da americana Pfizer, em 1998 (a patente do medicamento, aliás, expira em 2011). O líder Cialis, da também americana Lilly, tem cerca de 40% de participação. Os demais, pela ordem, são o Viagra e o Levitra, da alemã Bayer. O Helleva, quarto colocado, está à frente do Vivanza -- versão mais barata do Levitra, licenciada pela Bayer para o Medley em 2005. "O Helleva representa um divisor de águas para nós", afirma Ogari Pacheco, fundador e presidente do conselho de administração do Cristália. "Hoje sabemos que é possível inovar e disputar os grandes mercados."

 

Neste ano, seus pedidos de patentes de medicamentos inovadores praticamente triplicaram em relação a 2008. Segundo Pacheco, duas novas moléculas são tão inovadoras quanto o Helleva -- ambas com lançamento previsto para 2011. Uma delas dará origem a um medicamento para prevenir enfartes. Com o nome provisório de DMA, deverá concorrer com medicamentos de multinacionais como Pfizer e Merck Sharp & Dohme. A outra é uma molécula para tratamento da aids. Os dois estão com patentes requeridas no Brasil e nos Estados Unidos. Mesmo antes de chegar ao mercado, a nova leva de medicamentos do Cristália o coloca num patamar sem precedentes. "Nenhum outro laboratório brasileiro chegou ao mesmo nível de inovação", afirma Ruy Cury, da consultoria Booz & Company.

 

Com uma fração quase irrisória das verbas bilionárias de grandes laboratórios, Pacheco só consegue inovar porque não faz tudo sozinho. Hoje, é o que os teóricos chamariam de inovação colaborativa, algo que entrou em moda com a sofisticação da internet. No Cristália, porém, a busca de parcerias externas é uma tradição que vem de sua origem, em 1974, quando surgiu para abastecer a clínica psiquiátrica que Pacheco e três colegas montaram ao sair das faculdades de medicina e odontologia da Universidade de São Paulo. Na época, eles queriam deixar de comprar medicamentos importados -- e caros -- e substituí-los por cópias de fórmulas, desenvolvidas em parceria com universidades. Pacheco, o único fundador remanescente (dois venderam suas participações e um deles morreu), decidiu levar o negócio um estágio adiante ao contratar um time de pesquisadores nos anos 80. A primeira patente internacional só chegou duas décadas mais tarde. Em 2004, o Cristália registrou um anestésico criado de uma fórmula já conhecida, mas que causava alucinações. O laboratório conseguiu eliminar o efeito colateral numa nova versão chamada Ketamin, até hoje uma das mais vendidas no ramo de anestesia hospitalar. Desde então Pacheco passou a reinvestir cerca de 90% dos lucros, valor equivalente a cerca de 50 milhões de reais em 2008, para patrocinar pesquisas que são gerenciadas por um time de 105 especialistas contratados -- 0,4% dos 7,5 bilhões de dólares que a Pfizer, a líder mundial, investiu em pesquisa no ano passado.

 

Para aproximar a ciência do mundo dos negócios, em 2004 o Cristália criou um conselho científico, hoje presidido por Regina Scivoletto, pesquisadora aposentada da USP. "O conselho é a nossa antena para captar pesquisas", afirma Pacheco. Todos os meses, os 12 conselheiros -- pesquisadores da empresa e de universidades e instituições de pesquisa -- reúnem-se para analisar até três propostas de parcerias. Em média, 75% delas são descartadas já de largada. As que passam pelo filtro enfrentam cerca de dois meses de análises de viabilidade. Graças a esse esforço, o número de parcerias com instituições de ensino e pesquisa saiu de 14 para 23 nos últimos dois anos. Algumas delas, com a USP e a UFRJ, passaram a atuar na nova frente de desenvolvimento do laboratório, a biotecnologia. Neste ano, o Cristália anunciou que pretende investir 25 milhões de reais para conseguir fabricar até 2012 o hormônio de crescimento humano e o interferon, usado no tratamento de doenças virais -- ambos sem produção no país. Para ganhar escala nos testes preliminares de novos medicamentos, a empresa inaugurou no mês de setembro um laboratório destinado exclusivamente à fabricação de lotes pilotos, com investimento de 30 milhões de reais. A estrutura tem duas grandes vantagens. A primeira é permitir a produção em pequena escala, algo necessário na fase inicial. A outra é o custo -- equivalente a um décimo do valor gasto no método anterior, que exigia a paralisação da fábrica.

 

A estratégia de enfrentar grandes concorrentes forçou o Cristália a invadir um terreno novo, o varejo. Segundo maior fornecedor de remédios para hospitais do país -- 80% de suas receitas vêm das vendas diretas para hospitais --, o laboratório tentou compensar a falta de experiência no varejo ao recrutar profissionais tarimbados. Em abril do ano passado, contratou o executivo Rogério Frabetti, ex-diretor de marketing da Schering-Plough, para comandar a mudança. O primeiro passo do novo diretor executivo foi trocar a equipe de gerentes. Na Baxter, Frabetti foi buscar Carlos Pappini, hoje gerente de produtos farmacêuticos. Da Schering-Plough, contratou o novo gerente de produtos dermatológicos, Marcelo Guedes, e da Mantecorp, o gerente nacional de vendas, Antônio Carlos Fernandes. Em seguida, Frabetti ampliou em 40% a equipe de vendas, contratando propagandistas com experiência em laboratórios como Roche, Bristol e Eurofarma. Agora com cerca de 300 funcionários, o time de varejo já se equipara em tamanho ao de vendas hospitalares. "A mudança partiu de uma decisão estratégica de focar nosso crescimento em medicamentos como o Helleva e os próximos que estão por vir", afirma Frabetti.

 

Com os investimentos, o Cristália pretende aproveitar a expansão do setor no país. Segundo a consultoria IMS Health, a indústria farmacêutica brasileira deve crescer 12% em 2009 -- bem acima da média mundial, de 1,5%. Aos olhos de concorrentes estrangeiros, portanto, o Brasil se tornou alvo preferencial. Em abril, o francês Sanofi-Aventis comprou o laboratório brasileiro Medley por 1,5 bilhão de reais. "A tendência é que esse movimento continue", diz Marcello Albuquerque, diretor da IMS Health. Aos 71 anos, Pacheco -- que dá expediente na empresa todos os dias -- admite que o Cristália também já foi sondado. "Recebemos propostas de todos os lados -- banco, fundos, concorrentes. Mas até agora nenhuma delas seduziu", diz ele. "Quero mesmo seguir inovando para chegar mais perto dos que estão no topo e para não ser atropelado pelos que vêm atrás."

 


Veículo: Revista Exame


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