A vitória do pragmatismo

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Como a subsidiária brasileira do Walmart se tornou um exemplo para a matriz ao perceber que o aquecimento global é uma ameaça à perpetuação do próprio negócio
 


Na primeira semana de outubro, um auditório da Fundação Getulio Vargas de São Paulo sediou um evento que seria impensável tempos atrás. Para discutir o avanço do agronegócio na Amazônia, foram convidados participantes que historicamente sempre tiveram posições antagônicas. De um lado estavam defensores do agronegócio, como Blairo Maggi, governador de Mato Grosso e um dos maiores produtores de soja do país, e empresários dos maiores frigoríficos brasileiros, como Marcos Molina, presidente do Marfrig, e José Batista Júnior, ex-presidente e conselheiro da JBS-Friboi, hoje a maior empresa de carne do planeta. Do outro, as principais lideranças de uma das ONGs mais temidas pelo setor privado -- o Greenpeace --, além de representantes de dezenas de outras entidades ambientalistas.
  


A despeito da rivalidade dos dois grupos, naquele dia não houve bate-boca. Surpreendentemente, os dois lados chegaram a um acordo. Em meio a discursos quentes, mas civilizados, os frigoríficos selaram com o Greenpeace o compromisso de seguir uma série de critérios mínimos para operar na Amazônia. O objetivo é colocar ordem na atividade pecuária, hoje considerada a maior responsável pelo desmatamento na região. Sentada na plateia da FGV estava a paulista Daniela Di Fiori, vice-presidente de sustentabilidade do Walmart, terceira maior rede de supermercados do país. Ela acompanhava a movimentação no palco com interesse redobrado -- e uma ponta de orgulho. Foi graças a um movimento encabeçado pelo Walmart meses atrás que aquele acordo seria finalmente fechado. Tudo começou no dia 1o de junho, quando o Greenpeace divulgou para o mundo todo um documento intitulado A Farra do Boi na Amazônia. O extenso relatório, resultado de três anos de investigações, trata do papel da pecuária no desmatamento ilegal da região, revela como a atividade é muitas vezes financiada pelo próprio governo brasileiro -- por meio de entidades como o BNDES -- e mostra, em detalhes, seu vínculo direto com o produto final de mais de uma dezena de empresas globais, como Adidas, Nike, Kraft, Unilever, Carrefour e o próprio Walmart. Logo que o relatório veio à tona, o cubano Héctor Núñez, presidente da subsidiária brasileira do Walmart, e Daniela reagiram. "Eles nos procuraram para dizer que não queriam ser parte do problema e que fariam tudo para envolver todo o setor na causa", diz Marcelo Furtado, diretor executivo do Greenpeace no Brasil.

 

Desde então, o varejista se dedica a convencer os concorrentes a fazer pressão sobre os frigoríficos. Um dos resultados desse esforço foi o embargo, por cerca de 13 dias, dos maiores varejistas do país -- Carrefour, Pão de Açúcar e o próprio Walmart -- a qualquer carne proveniente do Pará, um dos focos da atividade ilegal. Além disso, hoje a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), da qual o Walmart é associado, está à frente de um programa para criar uma espécie de certificação para a carne bovina do país. O plano é que o tal selo, a ser lançado em meados de 2010, seja conquistado pelos frigoríficos depois de muitas auditorias e dê aos supermercados a certeza de que a carne fornecida por eles nada tem a ver com o desmatamento da Amazônia. "O Walmart conseguiu mobilizar o setor e fez com que esse movimento se desencadeasse num ritmo surpreendente", diz Furtado.

 

O protagonismo do Walmart nessa questão é um dos motivos que levaram o Guia EXAME de Sustentabilidade a elegê-lo, entre as 20 empresas-modelo, como a Empresa Sustentável do Ano. Hoje a empresa conta com iniciativas que vão da construção de lojas verdes a programas de conscientização de funcionários (veja quadro na pág. 40). Em 2008, a área de sustentabilidade da empresa investiu 17 milhões de reais -- outros aportes foram feitos também por outros departamentos, como comercial, construções e recursos humanos. Enquanto companhias como Natura e Promon, veteranas no guia, carregam a bandeira ambiental desde a fundação, há mais de 30 anos, o Walmart só acordou para esse assunto em 2005. Naquele ano, Lee Scott, então presidente mundial da rede (hoje à frente do conselho de administração), declarou publicamente sua angústia em relação ao futuro do planeta e decidiu que o maior varejista do mundo iria começar a agir -- naquela época o Walmart era duramente criticado não apenas pela aparente falta de preocupação com o meio ambiente mas sobretudo pelas práticas draconianas com fornecedores e pelo descaso com as condições de trabalho de seus funcionários. A declaração de Scott foi o ponto zero da saga verde da empresa, ancorada em três metas: reduzir a zero a geração de lixo em sua operação, ter 100% do suprimento de energia vindo de fontes renováveis e só vender produtos que não ameacem o meio ambiente. "O Walmart é uma daquelas poucas empresas para quem a ficha de que o mundo mudou caiu", afirma Furtado, do Greenpeace. Vale dizer que, mesmo depois dessa guinada, a empresa continua recebendo algumas críticas nos Estados Unidos, sobretudo por causa de suas políticas de recursos humanos. Em meados do ano passado, por exemplo, o The Wall Street Journal revelou que executivos da rede estavam se reunindo com subordinados para "adverti-los" sobre os perigos de uma provável vitória do candidato democrata Barack Obama nas eleições presidenciais. A questão era particularmente delicada porque os democratas são favoráveis a leis que facilitariam uma possível filiação de empregados a sindicatos -- e o Walmart detesta esse tipo de agremiação.

 

Passados quatro anos desde que Scott teve seu momento de iluminação, fica claro que a operação brasileira abraçou as premissas da matriz. "Todas as nossas operações no mundo estão caminhando, mas os ritmos são diferentes", afirma Núñez. "Progredimos rápido e, por isso, já estamos subindo a barra das exigências." Das 388 lojas que a empresa tem no Brasil, 140 se encontram num estágio de gestão do lixo avançado. Isso significa que, além de destinar para reciclagem resíduos como papéis, vidros, plásticos e metais, esses pontos de venda deixaram de mandar para os aterros o lixo orgânico -- ele é enviado a fazendas que transformam o resíduo em ração para os animais ou para usinas de compostagem que o transformam em adubo. O Walmart também colocou em prática programas de redução de consumo de energia e água. Em dezembro de 2008, inaugurou, no bairro de Campinho, na zona norte do Rio de Janeiro, seu primeiro hipermercado "ecoeficiente". Nele, e em outros dois abertos desde então, foram instaladas mais de 60 iniciativas verdes que permitem uma economia média de 25% de energia e 40% de água em relação aos hipermercados tradicionais da rede. No pacote de medidas estão, por exemplo, o uso de claraboias no teto e muitas janelas de vidro para permitir a entrada de luz natural -- todas cobertas com uma película especial que inibe a entrada de calor --, iluminação à base de luz solar, lâmpadas fluorescentes supereficientes e LEDs e até vasos sanitários que funcionam a vácuo e dispensam o uso de água.

 

Uma das iniciativas de maior fôlego dentro das lojas diz respeito à redução do consumo das polêmicas sacolas plásticas. Para diminuir em 50% até 2013 o uso das sacolinhas, a rede iniciou um programa em suas lojas do Nordeste no ano passado: um desconto de 3 centavos para cada sacolinha que o consumidor deixar de usar na hora da compra (o cálculo médio é de uma sacola para cada cinco itens adquiridos). Trata-se de uma solução muito diferente da encontrada por varejistas no exterior. Na China, as redes foram simplesmente proibidas pelo governo de distribuir as sacolas. Na Inglaterra e na Itália, a opção para coibir o uso foi cobrar por elas. "Achamos que, para sair da inércia e mudar de comportamento, o consumidor precisava de um empurrãozinho", diz Christiane Urioste, diretora de sustentabilidade do Walmart. O programa já foi estendido para a Região Sul e começa ainda neste ano a ser implantado no Sudeste. Como resultado até agora, o Walmart distribuiu 360 000 reais em descontos e deixou de usar 12 milhões de sacolinhas plásticas. A rede ainda incentiva o uso de sacolas retornáveis de pano e promove campanhas institucionais que são veiculadas nas TVs das lojas.

 

Para estimular todos os funcionários a participar dos projetos, foi preciso promover uma mudança cultural. Nos últimos dois anos, com a ajuda do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, 72 000 empregados passaram por treinamentos -- a rede tem hoje 77 000 profissionais. "A ideia foi sensibilizá-los individualmente. Só depois de pensar no impacto que as questões relacionadas à sustentabilidade tem sobre a própria vida é que as pessoas vão pensar na empresa", afirma Hélio Mattar, presidente do Akatu. Com o mesmo propósito, os funcionários também passaram a ser incentivados a ter o que o Walmart batizou de PPS -- ou Projeto Pessoal de Sustentabilidade -- e torná-lo público na intranet da empresa. Hoje, cerca de 42 000 pessoas têm um PPS, inclusive o presidente. Núñez escolheu como bandeira o consumo racional de água e se empolgou de tal maneira com a ideia que, no início de 2008, vestiu uma fantasia azul para gravar um vídeo que foi exibido para cerca de 3 000 pessoas durante um evento da empresa. "Eu era o Capitão Água", diz ele, em tom de brincadeira.

 

A participação de Núñez nesse processo de mudança, porém, vai muito além do discurso -- e da cara-de-pau para vestir uma fantasia. Em agosto deste ano, o executivo se ausentou por quatro dias da sede da empresa, em Osasco, na Grande São Paulo, para levar um grupo de executivos internacionais da rede até Roraima. Entre eles estava o americano Doug McMillan, responsável por todas as operações internacionais do Walmart. O objetivo era mostrar ao pessoal a Floresta Nacional do Amapá (Flona), uma área de 412 000 hectares que a empresa ajudará a conservar  pelos próximos cinco anos, em parceria com a ONG ambientalista americana Conservation International. "O desmatamento na Amazônia é o principal emissor de gases de efeito estufa do país", diz Núñez. "Por isso, entendemos que preservar as florestas é uma das melhores maneiras de combater as mudanças climáticas." O presidente também se encarrega diretamente de pressionar -- ou "convencer", como ele insiste em dizer -- os fornecedores da rede a desenvolver produtos mais verdes. De 2005 para cá, muito já foi feito em relação às marcas próprias, área na qual a empresa tem total ingerência. Um exemplo é que mais de 20 itens já tiveram suas embalagens reduzidas, gerando economia de dinheiro e de recursos naturais. Em julho, a rede reuniu mais de 300 fornecedores em São Paulo para que eles assinassem um pacto pela sustentabilidade. Na prática, isso significa que eles terão prazos para cumprir uma série de compromissos. Os fabricantes de produtos de limpeza, por exemplo, terão até 2011 para diminuir em 70% o fosfato nas fórmulas de seus produtos. Banida em vários países, a substância é responsável por provocar nos rios a chamada eutrofização -- proliferação exagerada de algas, que consomem o oxigênio e provocam a morte dos peixes. "Não somos pretensiosos ao acreditar que podemos mudar o mundo. Nós podemos mesmo", diz Núñez. "E não vamos fazer isso porque somos legais, mas simplesmente porque essa é a estratégia de negócios mais inteligente."

 


Veículo: Revista Exame


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