Os supermercadistas parecem ter encontrado na palavra confiança a solução para todos os males. Em meio a um 'pibinho' que não deve ultrapassar os 1,8% de crescimento este ano, na visão do setor, é preciso fazer mais com menos. E para isso, todo o seu 1,78 milhão de colaboradores terão que ser preparados para isso. Do pequeno mercadinho à grande rede, o lema será um só: resgatar a confiança perdida pelo setor, que registrou a sua pior marca em setembro de 2013, 66% de pessimismo em relação aos negócios. Já o índice de confiança estava abaixo de 10%. Daí a escolha de um tema tão sensível e caro e que permeou as 35 palestras ministradas na semana passada a mais de 3 mil executivos durante o 30º Congresso e Feira de Negócios da Associação Paulista de Supermercados (Apas). O evento é o maior do mundo e reuniu 550 expositores de 50 países, negócios em torno de R$ 5,8 bilhões e público estimado de 68 mil pessoas.
O grande desafio, neste caso, é saber como fazer um funcionário, que há até pouco tempo não era visto por boa parte do empresariado como estratégico, ter orgulho e se engajar na empresa em que trabalha. Primeiro, dizem os especialistas, é preciso ressignificar a palavra confiança. Mais do que o dicionário propriamente sugere (esperança firme em alguém, em alguma coisa: ter confiança no futuro), por confiança entenda: motivação, metas claras para todos, meritocracia, treinamento, oportunidades, crescimento sustentável e, por fim, aumento de produtividade e eficiência. "A confiança é uma grande alavanca para o desenvolvimento econômico de qualquer país e de qualquer negócio. Não tem empresa bem-sucedida sem confiança. Entendemos que o país e o setor precisam trabalhar este tema, pois os empresários não estão tão confiantes na economia do Brasil. E as pessoas, nas empresas. Temos que olhar esta questão de frente", afirma o presidente da Apas, João Carlos Galassi, dono da rede Galassi Supermercados, do interior de São Paulo. Na concepção do varejo, esse lema passa a fazer parte do que classificam como 'capitalismo consciente e sustentável'.
Uma das formas de mensurar a confiança ou descrença de público interno de uma empresa é por meio da rotatividade no emprego. O índice do setor supermercadista sempre foi alto. Em torno de 59%. Mais um motivo para ligar o pisca-alerta e mudar. "Promovemos jantares com mais de 15 mil executivos para discutir esta questão desde o fim de 2013 até agora. Queremos criar condições de vínculo, comprometimento e entusiasmo de nossas pessoas com os nossos negócios. Principalmente para quem está no ponto de venda e é mais sensível a tudo isso", defende. Galassi revela que hoje há cerca de 100 mil vagas disponíveis no país neste setor com dificuldades para encontrar quem as preencha adequadamente.
Para o sócio e fundador da Falconi Consultores de Resultado, Vicente Falconi, existem três fatores que levam uma empresa a crescer e precisam ser reparados: pessoas, conhecimento do negócio e método. Cuidar e estruturar esses pilares é fundamental para melhorar o resultado das empresas e garantir, no caso, o desenvolvimento e comprometimento das lideranças supermercadistas. Só assim, na sua visão, será possível formar equipes certas com quem poderão contar. "Se as pessoas não sabem o que é preciso e nem como fazer, não adianta ter meta. A equipe deve se preparar, aprender quais métodos utilizar e adquirir conhecimento novo todos os dias. Um pouco a cada dia. É o que manterá o profissional oxigenado, atualizado, seguro e motivado", defende Falconi, apesar de admitir que motivação humana é algo complexo.
Mesmo com crescimento real de 6,1% no ano passado e faturamento de R$ 272,2 bilhões e prevendo incremento das vendas em R$ 1,8 bilhão este ano por conta da Copa do Mundo, os executivos do setor veem muitas amarras estruturais que impedem um avanço mais acelerado. Mas enxergam também suas ineficiências internas e creem que para avançar terão que destravar tanto as pautas com o governo quanto arrumar a casa.
O principal desafio para este setor - que surgiu no fim da década de 50 e viu as primeiras grandes redes se formarem nos anos 70 - nos próximos anos é aumentar a produtividade - tema já definido para o congresso de 2015 - por meio da confiança e motivação das pessoas. Tida como a porta de entrada para o primeiro emprego, empresários e executivos da área querem agora formar, manter e criar planos de carreira para que os colaboradores permaneçam em suas redes por muitos anos. Principalmente em meio ao atual cenário de apagão de mão de obra. "Queremos criar uma ampla frente do comércio supermercadista, que resulte em uma força coletiva para impulsionar os supermercados e o país", diz Fernando Teruó Yamada, presidente da Associação Brasileira dos Supermercados (Abras).
O movimento faz eco também no Nordeste. João Cláudio Andrade, dono da RedeMix de Supermercados e da Mixideal Atacado, em Salvador, é um entusiasta da proposta. "Estamos disseminando valores como disciplina para melhorar as relações organizacional e interpessoais. Vamos ajudar as lojas a prepararem seus funcionários para que possam estabelecer metas e métodos palpáveis ao seu desenvolvimento. Contratamos uma consultoria para nos ajudar a treinar as equipes", afirma Andrade, que possui 870 funcionários em suas oito lojas, e que cresceu acima da média do setor, com receita de R$ 296 milhões em 2013, 15% a mais do que no ano anterior.
O executivo é também presidente da Associação Baiana de Supermercados (Abase) e está promovendo uma campanha para mapear e conhecer melhor as dificuldades de gestão do setor. "Queremos dar qualificação certa a quem precisa e conscientizar sobre o novo momento do mercado". Dos 10 mil estabelecimentos existentes na Bahia, só 600 são associados à Abase.
Não são só os supermercados que abraçaram a causa. Muitos dos grandes fornecedores da indústria de alimentos também caminham nessa direção. A Laticínios Tirolez, por exemplo, desenvolve um trabalho interno com seus 1,2 mil funcionários por meio do programa 'Despertar'. A proposta é mostrar que a confiança está em cada um e despertá-los para que sejam coerentes com seus discursos. "Lançamos o programa no dia primeiro de maio em uma vivência com os 20 principais gestores da empresa, que agora devem cascatear essa filosofia para todos os nossos colaboradores. O resultado será melhor desempenho e performance dos negócios", diz Cícero de Alencar Hegg, fundador e diretor-presidente da empresa, que faturou R$ 430 milhões em 2013, 19% superior ao ano anterior. Para 2014, a estimativa é 17% de alta.
Até as recém-criadas centrais de compras coletivas do pequeno varejo embarcaram nesta onda. Hoje são 450 empresas associadas a essas instituições no Brasil, que movimentaram juntas R$ 5 bilhões no ano passado. Um exemplo típico está na Associação dos Varejistas do Espírito Santo (Avaes), entidade com 63 supermercados associados entre os do Estado e do sul da Bahia e do norte fluminense. Eles têm juntos 4,5 mil colaboradores e faturaram R$ 1,1 bilhão em 2013, segundo João Carlos Coutinho Devens, presidente da central de compras e da Associação Capixaba de Supermercados (Acaps). "Devemos participar dessa nova mentalidade. Desenvolver metas, premiações, treinamento e palestras para todos os funcionários."
Kroger é exemplo de engajamento
A Kroger, maior operadora de supermercados dos EUA e a quinta maior do mundo, é conhecida pelos constantes movimentos de aquisições que chacoalham vez ou outra o varejo americano. A última foi anunciada em julho do ano passado e envolveu o desembolso de US$ 2,5 bilhões para trazer a marca Harris Teeter para o rol de bandeiras de outros supermercados que mantém sob sua administração. Lynn Marmer, vice-presidente para assuntos corporativos do grupo, atribui o sucesso de suas operações à forte base de confiança que estabelece com colaboradores, clientes e sociedade. A Kroger faturou US$ 98,4 bilhões em 2013, crescimento de 3,6%, e estima bater os R$ 100 bilhões este ano.
Além de compradora, a empresa, que existe há 131 anos e só atua nos EUA, é também invejada pelos concorrentes devido a sua elevada retenção do quadro funcional. O pelotão é formado por 375 mil pessoas. Desses, 16 mil estão no grupo há mais de 30 anos e admiram a empresa.
Além de investir pesado em política de benefícios, treinamento e no desenvolvimento das relações interpessoais, a introdução de uma nova filosofia, que fez com que o público interno se sentisse tão importante para a Kroger quanto o externo (clientes, investidores e sociedade), foi determinante. "Em essência, o supermercado é um negócio de relacionamento. Para cada um desses stakeholders, a confiança é o ponto central e é o que determina se eles irão comprar conosco, trabalhar conosco, negociar conosco e investir em nós", disse a executiva.
Tudo isso considerando a complexidade de uma empresa que trabalha com modelos distintos de lojas nos 49 Estados em que atua. São 2.285 supermercados no estilo Combo - formato classificado como básico e que representa 85% dos negócios do grupo. 21 mil farmácias, 720 lojas de conveniência, 320 joalherias e 115 clínicas médicas alocadas dentro do espaço supermercado, além dos postos de gasolina. Lynn roda o mundo para mostrar que o modelo que adotaram não é nada inovador, mas pode ser considerado revolucionário dentro de um setor conservador na área de recursos humanos.
"Pesquisamos a confiança e o engajamento dos nossos colaboradores: 83% participaram do último levantamento. O nosso nível total de engajamento foi de 85%, cinco pontos acima do que o identificado no ano anterior. O que é bem alto para o setor e vai além do modelo da indústria" diz Lynn.
Veículo: Valor Econômico