Vinhos: Um selo fiscal para atrapalhar todos

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Obrigatoriedade de uso do selo só cria mais burocracia e aumenta o chamado "Custo Brasil".

 

Há uns 15 anos, escrevi artigo para um jornal de São Paulo comentando uma portaria então baixada pelo Ministério da Agricultura determinando que vinícolas e vinhos estrangeiros deveriam estar previamente cadastrados no órgão para poderem ser comercializados no Brasil e estabelecendo uma série de exigências para conceder o registro. Além dos entraves burocráticos e da própria morosidade em analisar os processos, o que atrasaria em meses os embarques, na chegada seriam retiradas duas garrafas de cada tipo de vinho para análise - produtores de grandes de Bordeaux, Romanée-Conti e Montrachets, que destinavam pouquíssimas unidades de suas preciosidades e o faziam em respeito àqueles que sabem apreciá-las, consideravam isso um desperdício e se negaram a exportar (um importador ia buscar suas 12 garrafas de um renomado Montrachet e voltava com elas na mala). O mais esdrúxulo, porém, era a instrução que o estabelecimento do produtor teria que ser inspecionado "in loco" no país de origem, para verificação das condições fitossanitárias e tecnológicas. É de se imaginar um agente do Ministério da Agricultura tocando a campainha do Domaine de la Romanée-Conti, dizendo que vinha inspecionar as instalações e apurar se elas tinham os requisitos necessários para elaborar vinhos dentro dos padrões determinados pelas autoridades brasileiras (!).

 

Diante de tais despropósitos escrevi no artigo que a portaria me fazia lembrar do "samba do crioulo doido", ressalvando que ele era uma brincadeira bem humorada vinda de um cérebro inteligente. Entre outras ponderações, anotei que não havia pessoal gabaritado e suficiente no ministério para executar as funções - recebi carta bem mal humorada de responsáveis pela área -; disse que a medida era uma forma disfarçada de protecionismo e tinha por finalidade proteger a indústria vinícola nacional; e, que se fosse a solução para limitar entrada de zurrapas, outros países muito mais preocupados com a saúde e o bem-estar de suas populações já a teriam adotado.

 

No fundo, o selo fiscal não tem por finalidade moralizar o setor e acabar com o contrabando; ele é protecionista apenas

 

O Brasil melhorou em muitos aspectos daqueles tempos para cá e até algumas dessas exigências caíram, mas o setor vinícola do Brasil continua a me fazer lembrar a música de Stanislaw Ponte Preta. O mais incrível é que, a despeito das adversidades, taxações absurdas e briguinhas internas - entre os produtores nacionais, entre os importadores e entre os dois lados -, o interesse por vinho e o nível de conhecimento sobre o assunto cresce de forma consistente, bem mais, no entanto, do que o consumo propriamente dito. Seu preço excessivamente alto (aqui no Brasil) - fruto (quase que exclusivo) das taxas irracionais impostas pelo governo, como demonstrado na coluna da semana passada - impede que o crescimento acentuado da classe média brasileira se traduza em aumento do consumo de vinho. E o que se nota é a falta de união entre os interessados, produtores nacionais e importadores, para propor medidas que venham de fato ao encontro dos interesses de ambos. Sai perdendo também o apreciador de vinho.

 

Nesse aspecto, por mais que eu queira defender a indústria vinícola brasileira, não há como negar que lhe cabe boa parte da culpa pela situação atual. A última "aprontada" foi a pressão pela adoção do selo fiscal, conseguida em abril do ano passado e que, aos trancos e barrancos, foi sendo implementada desde janeiro último. Venho acompanhando todo esse processo e compilando declarações, dados e incongruências. Chegou a hora de desarquivar.

 

A coleção, na verdade, começou antes disso, durante mesa redonda na Expovinis em maio de 2009, cujo propósito era debater o mercado de vinhos. Na ocasião, falou-se sobre a questão do contrabando de vinho que chega pelas fronteiras de Paraguai, Argentina e Uruguai, prejudicando quem trabalha seriamente nesse setor. Números mostrados apontavam que o Paraguai importava mais vinho, em especial argentino e chileno, do que o Brasil - "paraguaios não bebem água", foi o comentário sarcástico. "É impossível fiscalizar toda nossa extensa fronteira", era sempre a alegação do órgão responsável por fazê-lo.

 

O curioso é que a tentativa para solucionar o problema, que afetava (a princípio, apenas) os importadores, foi levada adiante por quem não tinha nada a ver com ele: os produtores nacionais. Com a justificativa de facilitar a identificação dos produtos, assegurar sua legitimidade e ainda permitir o controle de volumes comercializados pelas empresas, foi levada adiante a adoção do "selo fiscal para vinhos", abrangendo nacionais e importados. A proposta foi discutida na Câmara Setorial da Cadeia Produtiva de Viticultura, Vinhos e Derivados, órgão consultivo ligado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e aprovado por maioria de votos. A Câmara compõe-se de cerca de 30 membros, sendo 5 ligados ao ministério (sem direito a voto), 23 à indústria vitivinícola nacional e 2 aos importadores, a Associação Brasileira dos Exportadores e Importadores de Alimentos e Bebidas (ABBA) e Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), a propósito, as únicas que votaram contra a adoção do selo. No total, seis entidades foram amplamente favoráveis ao selo, cinco também a favor, com condicionantes, e seis se abstiveram (alguns faltaram à sessão).

 

Cabe acrescentar que para obter o selo a empresa tem que apresentar registro de idoneidade fiscal, dela e dos sócios. Mesmo fazendo tudo direitinho, sempre há uma peninha, o que dificulta cumprir a exigência. Importadores têm como saída importar via uma trading "limpa", mas os pequenos produtores brasileiros não têm saída. Segundo consta - não tenho comprovação -, há um abaixo assinado com 400 nomes pleiteando anistia ou abertura para contornar a exigência.

 

No fundo, o selo fiscal não tem por finalidade moralizar o setor e acabar com o contrabando. A medida já havia sido implantada com vodca e uísque e não deu resultado, apenas abrindo caminho aos falsificadores. Na verdade foi mais uma maneira de dificultar as importações, sem que isso se configurasse aumento de imposto. Pelos números do primeiro semestre, que apontam crescimento das importações, é possível concluir que se o intuito era proteger o vinho nacional, a proposta foi inócua.

 

Revendo algumas notas do ano passado, me divirto (à contragosto, diga-se de passagem) com algumas declarações. O presidente do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), Julio Fante estimou um aumento de 20% a 30% na comercialização dos produtos brasileiros, isso pouco tempo antes do anúncio da adoção do selo. Enganou-se. Em almoço na Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, e perante representantes de mais de 30 diferentes segmentos da indústria do Estado, o ministro Guido Mantega declarou que a medida "não representa nenhum aumento de impostos para o setor (quanta gentileza, digo eu). O selo evita o contrabando, o subfaturamento e a informalidade, e dá mais competitividade ao vinho do país, que sofre com a concorrência desleal", destacando ainda "que o governo federal atendeu uma reivindicação histórica das principais entidades da vitivinicultura nacional, que tem cerca de 90% da produção instalada no Rio Grande do Sul". "Este é o governo que mais tem atendido nossas reivindicações, sempre preocupado em nos ajudar a enfrentar as dificuldades existentes no dia a dia", disse em outra oportunidade o presidente da Uvibra, Henrique Benedetti.

 

Pergunta: se, a duras penas (reivindicação histórica) conseguiram isso, porque não lutaram para baixar a carga tributária? Isso sim ajudaria a reduzir o contrabando. A questão do selo é ridícula comparada com a taxação. Ele só serve para complicar a vida do importador (e dos pequenos produtores, que entraram de gaiatos).

 

E complica, ou melhor, enlouquece, reforçando a tese do "samba do crioulo doido" e contrariando o que imaginou a presidente do Sindivinho-RS, Cristiane Passarin, ao esclarecer que o valor do selo fiscal deveria ficar por volta de R$ 23 o milheiro, valor que poderia ser creditado no PIS/Cofins, concluindo, "ou seja, o custo será zero". Mais do que custo, o selo gera confusão, perda de tempo e desgaste. Senão vejamos:

 

- O selo só pode ser pedido depois de liberada a mercadoria (na quantidade exata das garrafas), isso é, pagos os impostos (ao redor de 150% como demonstrado na coluna da semana passada) e vistoriada pela alfândega e pelo Ministério da Agricultura. Demora em torno de cinco dias para receber o selo, período sobre o qual incidem despesas portuárias;

- Os selos vêm em folhas, que devem ser enviados para uma gráfica para cortá-los em tiras. Isso tem custo e mais um dia perdido;

- Cerca de 12 pessoas trabalhando (com carteira assinada) levam aproximadamente 3 dias para abrir cada caixa, colocar o selo manualmente garrafa por garrafa e fechar a caixa novamente. Custo médio R$ 0,30 por garrafa. Há ainda problemas de ociosidade ou acúmulo em função da impossibilidade de programar a chegada dos contêineres;

- A mercadoria depois de selada tem que ficar a disposição para eventual fiscalização por 15 dias, não podendo ser comercializada;

- Selo é papel-moeda, não pode perder, rasurar ou descolar. É preciso manter livro fiscal dos selos, associando as numerações aos lotes e para quem foram vendidos, caso haja questionamentos da fiscalização no ponto de venda.

 

As duas associações que reúnem importadores, Abrabe e Abba, entraram com mandado de segurança contra a adoção do selo fiscal. Só a última conseguiu, permitindo que seus associados, e só eles, pudessem comercializar os vinhos sem selo. A liminar foi cassada, fazendo com que voltassem a selar as garrafas. Diferenças de entendimento com relação à lei fizeram com que fiscais impedissem a venda de garrafas não seladas, ainda que isso tivesse acontecido durante a vigência do mandado de segurança. Esses vinhos estão parados no depósito.

 

Na semana passada, o mérito da ação foi julgado e a sentença foi favorável aos associados da Abba, que, a partir de sua publicação - está para acontecer nos próximos dias -, estão desobrigados de selar. Várias questões se impõem. O que vai acontecer se o recurso que deve ser interposto reverter a situação? Mesmo tendo direito (provisório), vale a pena para o importador correr o risco de não selar? Os compradores - restaurantes, délis, supermercados etc. - vão comprar garrafas não seladas, que estarão lado a lado com as que portam selo?

 

A partir de janeiro de 2012, a lei determina que nenhuma garrafa poderá ser comercializada se não estiver com o selo fiscal. Significa que tudo que está estocado, anterior à lei, tem que ser vendido, o que é inviável - há vinhos com giro lento. A Abba está pleiteando prorrogação de quatro anos. No que você aposta, caro leitor? Melhor beber e deixar rolar. Tudo isso se chama "Custo Brasil".(Jorge Lucki)

 


Veículo: Valor Econômico


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