Destilada em mitos e lendas, a cachaça sempre decantou suas polêmicas. A mais recente foi presidencial, quando Dilma Rousseff trouxe na bagagem (na primeira quinzena de abril), a chancela da denominação de origem – o que nem Lula conseguiu – e que reconhece a bebida como produto exclusivamente brasileiro no mercado norte-americano, um mimo ‘gentilmente’ cedido pelo colega Barack Obama. Tudo para garantir que seu bourbon não seja mais considerado uísque no Brasil.
"Isso não foi uma conquista da Dilma, é um feito dos produtores e da indústria nacional, resultado de uma luta de 40 anos em negociações entre a categoria e os Estados Unidos". A elucidação do fato é feita por Cesar Rosa, homem que comanda o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac) e dono de algumas das mais vendidas aguardentes de cana do País. Ainda assim, foi de sua lavra (em edição limitada) – uma Velho Barreiro Diamond, avaliada em R$ 212 mil e cravejada de diamantes – o presente dado ao mandatário do norte.
Independentemente do 'pai da criança', Rosa comemora a conquista que dá à cachaça as cores da bandeira que tremula por aqui, assim como a tequila balança os sombreros mexicanos e o scotch dança na barra dos kilts escoceses.
Principalmente porque isso abre a possibilidade de os produtores trabalharem melhor a inserção de seus itens no maior mercado (de consumo e de formação de opinião) de destilados de todo o mundo. "Agora, cachaça é brasileira. Uma oportunidade perdida pelos russos e sua vodca, que pode ser produzida com esse nome em qualquer lugar".
A denominação de origem pode facilitar o trânsito da canjibrina (mais um entre os centenas de sinônimos listados pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo) pelo planeta. E ampliar a presença de nossas marcas lá fora. Atualmente, apenas 1% da canhasca segue viagem ao exterior. O principal vertedouro está na Alemanha, mas 70% das compras levam nossa branquinha a granel, para ser engarrafada entre chucrutes e salsichas que apagam os traços da brasilidade.
Resultado: ainda tem pouco gringo encantado com a água que passarinho não bebe. A produção atual é de 700 milhões de litros por ano, para uma capacidade instalada de 1,2 bilhão de litros. Ou seja, nossos 40 mil produtores – e suas 4 mil marcas certificadas pelo Ministério da Agricultura – estão preparados para destilar outros 500 milhões de litros de catinguenta.
Rosa e seus parceiros agora vão servir o reconhecimento norte-americano em taças finas nos corredores da Organização Mundial do Comércio (OMC), onde há 10 anos mantêm tratativas em busca de igual resultado.
Ele lamenta, contudo, que a jornada não seja "oficialmente apoiada" pelo governo federal, nem pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex Brasil) "após sete anos de tentativas". "Quem nos apoiou nos Estados Unidos foi o Sebrae de Pernambuco."
De barro – Que hoje a canha é verde-amarela não há mais dúvidas. Mas ninguém tem notícia de seu registro de nascimento. "Ela nasceu em algum lugar da América Latina. Nem europeus e muito menos os africanos conheciam a destilação da cana-de-açúcar." É o que diz Erwin Weimann, autor de um dos grandes livros sobre o tema.
Conforme ele, os destilados surgem quando o homem entra no ciclo das navegações (1450-1500) e as bebidas fermentadas se mostram inúteis para longas travessias. No Brasil, a péla-goela era destilada nos alambiques de barro trazidos pelos europeus para matar saudades de suas bagaceiras e congêneres.
Weimann vê como "romântica" a história de que uma gota da preciosa teria ungido os músculos cansados de um escravo negro e surgido para o mundo, nome e sabor únicos: pinga!
O fato é que a quebra-munheca logo conquistou destaque: o sangue da cana pelo dos escravos africanos, comprados e apaziguados por esse ouro líquido. Até Dona Maria, a Louca, declarou guerra a essa Macunaíma danada que, preguiçosa e gradativamente, escoava os cofres da monarca.
Lenda viva – Várias regiões produzem boas cachaças, desde Pernambuco – onde nasceu o primeiro engenho de cana do Brasil – até o Rio Grande do Sul. Mas uma cidade em Minas gerais é a meca do mé: Salinas. Com 60 marcas e produção anual estimada em cinco milhões de litros, é de lá que sai para o mundo, desde 1943, uma das mais cultuadas pringomeias que já se deslindou: Havana, de Anísio Santiago.
Seu neto, Roberto Carlos Morais Santiago garante que a família mantém o processo forjado pelo patriarca. E que "não há o menor interesse em aumentar a produção, muito menos o tempo de envelhecimento". Seu volume médio é de 15 mil litros por safra, envelhecidos por dez anos em dornas de bálsamo ancestral. Requisitada, pode facilmente atingir R$ 200 por garrafa.
Mas uma rara mesmo, como a encontrada no Empório Santa Therezinha, no Mercado Municipal de São Paulo, não é vendida por menos de R$ 25 mil. Ela possui primas mais modestas, de R$ 18 mil, R$ 3,5 mil... Quem afasta essas beldades etílicas dos menos endinheirados é a vendedora Daniela Soares.
Para os simples mortais, ela dispõe de dezenas de rótulos vindos de todos os cantos. E se encarrega de despachar pelo menos 300 deles todos os meses. "Vendo mais cachaça que uísque. Em setembro, então, durante o Festival da Cachaça o resultado triplica".
Para quem pretende perseguir a apaga-tristeza, os cineastas Gabriela Barreto e Felipe Jannuzzi criaram o Mapa da Cachaça. Site que desnuda a história dessa brasileirinha, e mostra onde encontrar uma engasga-gato de primeira.
Veículo: Diário do Comércio - SP