Vinhos: O "julgamento dos ícones do mundo"

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Nenhum evento associado a vinho teve tamanha repercussão e produziu tantos desdobramentos quanto o Julgamento de Paris, degustação confrontando rótulos californianos e franceses realizada na capital francesa em 1976. Na ocasião, em prova às cegas, tintos e brancos americanos deixaram para trás congêneres franceses de prestígio, fato absolutamente inesperado e de difícil contestação, já que o júri era composto por competentes degustadores locais.

 

O resultado não serviu apenas para dar projeção aos rótulos americanos. Mudou o cenário vinícola internacional ao fazer que regiões produtoras mundo afora despertassem para uma nova realidade, a de explorar melhor seu potencial para a elaboração de vinhos de qualidade.

 

De lá para cá, sobretudo a partir da década de 1990 - em vinho, as respostas não são imediatas -, houve um crescimento gradual e consistente na participação de países emergentes no setor, resultando na conquista de fatias importantes do mercado, algo que ninguém se atreveria a prever em espaço de tempo relativamente curto.

 

A ascensão do chamado "grupo do Novo Mundo" não se deu apenas porque eles melhoraram a qualidade de seus vinhos - sem o que não haveria crescimento sustentado -, mas também por causa de uma boa estratégia para seduzir os consumidores, atacando o que se poderia identificar como pontos fracos do modelo seguido pelos, na época, inabaláveis líderes do mercado. Um dos pontos mais importantes dizia respeito à espera para o vinho chegar ao seu apogeu e poder ser aberto. Para tanto, além das facilidades que o clima mais quente lhes proporciona, passaram a adotar novas técnicas de manejo do vinhedo e vinificação para que o vinho pudesse ser consumido sem demora.

 

A questão é quanto isso os favorece numa prova contra rótulos do Velho Mundo e abrevia sua evolução. Bem a propósito: o fato de os tintos franceses escolhidos para encarar os californianos na degustação de 1976 terem vindo, em grande parte, da safra de 1970, que sabidamente se caracterizava por taninos mais duros e evidentes, foi usado como atenuante para o placar desfavorável, já que os bordeaux estariam muito jovens para ser provados naquele momento.

 

Só os números que indicavam avanço dos concorrentes já mereceria por parte dos produtores europeus uma mudança nos padrões para se adaptar aos novos tempos. Havia, ainda assim, mais razões para isso e elas são mais importantes do que de início aparentam: o Julgamento de Paris levou a um aumento do interesse do consumidor americano por vinhos, e o consequente fortalecimento do mercado interno do produto no país abriu espaço para que surgissem publicações especializadas, entre elas a "Wine Spectator" e a "Wine Advocate", esta editada por Robert Parker Jr., que se tornaria o mais influente e poderoso crítico sobre o assunto, dentro e fora dos Estados Unidos.

 

Parker tem, definitivamente, predileção por vinhos intensos e robustos e dá menos importância àqueles com certas sutilezas e voltados à elegância - também não poderia ser diferente para quem está habituado a provar mais de 60 amostras em série. Sabendo disso e, mais ainda, da influência que uma nota boa dele tem para o sucesso nas vendas, muitos produtores mudaram o estilo de seus vinhos para se adequar ao gosto do guru.

 

A "parkerização", como se convencionou apelidar o processo, alastrou-se - em maior ou menor grau - por todos os cantos, desde produtores de regiões prestigiadas, caso de Bordeaux e Toscana, até vinhos ainda pouco conhecidos que buscam destaque no mercado externo.

 

O certo é que não se faz mais vinhos como antigamente. Para o bem e para o mal.

 

Novo Mundo e Velho Mundo mantêm estilos distintos, mesmo porque as diferenças climáticas - o terroir como um todo - entre ambos assim determinam. Deve-se admitir, no entanto, que esses padrões estão muito mais próximos do que estavam nos anos 1990, ao menos em se tratando de tintos e no que se refere aos cortes bordaleses - pinot noir é melhor esquecer. E a capacidade de envelhecimento, como fica? Nesse caso, não há bola de cristal. Tem que ter histórico.

 

Esse foi o desafio a que se propôs Eduardo Chadwick, reconhecido produtor chileno que tem em seu portfólio vinhos ícones do Chile, como Seña, Don Maximiano e o que leva seu sobrenome, em degustação realizada em São Paulo na semana passada. Na verdade, foi seu mais novo desafio. Antes, inspirado no Julgamento de Paris e visando divulgar seus vinhos internacionalmente, Chadwick colocou-os lado a lado com rótulos famosos da Europa em degustação às cegas.

 

A prova foi realizada pela primeira vez na Alemanha, mercado importante e onde merecia arriscar, tendo sido conduzida pelo mesmo (insuspeito) Steven Spurrier, idealizador da prova pioneira em Paris em 1976. A "Cata de Berlim", como ficou conhecida, teve lugar na cidade alemã em janeiro de 2004 e reuniu 40 especialistas europeus, entre jornalistas de expressão e profissionais do setor.

 

Valeu o arrojo: os dois melhores vinhos foram o Viñedo Chadwick 2000 (um single vineyard situado ao lado do Almaviva, no Vale do Maipo, o único vinho do grupo fora de Aconcágua) e o Seña 2001, à frente, pela ordem, do Château Lafite 2000, Château Margaux 2001, Seña 2000, Château Margaux 2000, Château Latour 2000, Viñedo Chadwick 2001, Don Maximiano 2001, Château Latour 2001 e Solaia 2000. Chadwick ganhou ânimo, repetindo a receita 15 vezes mundo afora, com pequenas variações, sempre com resultados favoráveis.

 

O fato de não haver mais dúvidas quanto às qualidades de seus vinhos não fez Chadwick descansar. Ele iniciou uma empreitada para demonstrar que eles tinham, também, potencial de guarda, requisito dos rótulos renomados. Com tal propósito, começou a organizar degustações verticais do Seña, partindo agora para uma série, variante da Cata de Berlim, mas colocando em prova, num crescendo, safras antigas até mais recentes para comparação com prestigiados exemplares italianos e bordaleses.

 

Com a pomposa denominação de The World's Icons Judgment (O Julgamento dos Ícones do Mundo), a primeira foi em Seul, há um mês, e a segunda, a recém-realizada em São Paulo. Nesta participaram, na sequência em que foram degustados - às cegas (nem a relação foi divulgada) -, Château Mouton Rothschild 1995, Don Maximiano 1995, Viñedo Chadwick 2000, Château Margaux 2001, Sassicaia 2000, Seña 2000, Château Latour 2007, Seña 2007, Don Maximiano 2005, Tignanello 2009, Don Maximiano 2009 e Seña 2010.

 

Ainda que o objetivo não seja acertar a identidade dos vinhos, numa degustação às cegas a tentação é grande. Tenho em conta, porém, que em vinho não existem verdades absolutas e, sobretudo nessa área, humildade é uma virtude imprescindível. Fiquei em dúvida quanto à origem de alguns dos rótulos, até porque nem sabia os que estavam no jogo. No fundo, certeza mesmo é que havia nitidamente uma primeira metade com certo grau de evolução e uma segunda formada por vinhos mais jovens.

 

A despeito de apontar as amostras de números 1 e 4 como bordeaux, estranhei - e não me agradou - o Mouton 1995, por seus taninos verdes e secantes (tanino sinaliza que é um bordalês, mas não precisava chegar a tanto). Talvez tenha sido a dose final de uma garrafa, já que o vinho no meu copo estava velado. Quanto ao Margaux, apesar de sua elegância, fiquei surpreso ao saber que se tratava do 2001, safra de que gosto e que tenho provado com certa frequência.

 

Imaginando que eram, em ambos os casos, problemas de conservação, cheguei a perguntar a Chadwick, do meu lado, quem havia fornecido as garrafas - haviam sido compradas na Berry Brothers, em Londres, ele respondeu.

 

Problemas com transporte? Não foi a opinião dos 60 presentes, que, na média geral, manifestaram preferência pelo Château Margaux, primeiro lugar na classificação final. O Mouton ficou em quarto. Por outro lado, me agradaram os três chilenos que compuseram a primeira leva da degustação, o Don Maximiano 1995, o Chadwick 2000 e o Seña 2000, demonstrando vivacidade e sinais que evoluíram positivamente.

 

Na, por assim dizer, segunda parte, composta por vinhos mais jovens, os chilenos mostraram força. Além de estar diante de "adversários" mais fracos - Château Latour 2007, uma safra inferior, sem estrutura (para mim, a pior da década em Bordeaux), e Tignanello 2009 -, e, sabidamente, se mostrar bem nessa fase juvenil, os três tintos de Chadwick ganharam qualidade nos últimos anos. Por vários motivos: novos vinhedos em produção (Seña e Don Maximiano), parreiras cada vez mais velhas e uma equipe técnica competente, que assumiu a partir da saída de Mondavi da sociedade com o Seña, por volta de 2003.

 

Computando os 12 vinhos, minha preferência ficou, pela ordem, com: Don Maximiano 2009, Seña 2010, Seña 2007 e Margaux 2001 (2001?). Diante disso, e mesmo reconhecendo que Eduardo Chadwick se saiu bem em seu desafio, me veio a dúvida: a questão é saber se um vinho pode envelhecer ou se ele vai melhorar, ganhar alguma coisa com os anos. Caso contrário, é melhor consumi-lo logo. Hoje, eu ficaria com a segunda hipótese.

 

 

Veículo: Valor Econômico


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