No início de 2011, o artigo "Criando valor compartilhado", publicado na conceituada revista "Harvard Business Review", balançou o universo da responsabilidade social corporativa. Escrito pelos especialistas em estratégia empresarial Michael Porter e Mark Kramer, o texto trazia à luz uma nova abordagem para a atuação social das empresas. O princípio era claro: em vez de apoiar projetos sociais com uma perspectiva filantrópica, as empresas deveriam aliar suas estratégias de negócios às demandas sociais mais presentes na sociedade. Ou seja, gerar valor econômico para si mesmas, ao mesmo tempo em que criam valor para a sociedade, a partir do eixo dos próprios negócios.
Imediatamente, o conceito de criação de valor compartilhado atraiu a atenção de grandes empresas que, a despeito de manterem fundações e institutos para atuar de forma social, não conseguiam avaliar os impactos de sua atuação nesse campo. A proposta de Porter e Kramer trazia como novidade a noção de que negócios e atuação social eram indissociáveis e logo passou a ser esmiuçada nas escolas de negócios no mundo todo. Dois anos após a publicação do artigo, os autores já haviam percorrido 45 países realizando conferências sobre o conceito.
Uma pesquisa da revista "The Economist" mostrou que 28% dos CEOs globais mudaram algo em sua estratégia de negócios com base na proposta do valor compartilhado. Na Índia foi aprovada uma lei obrigando as empresas a investirem 2% dos lucros em iniciativas com esse perfil. "Estamos em uma jornada para que as empresas compreendam o conceito. Mas desde que publicamos o artigo, a atenção que o conceito tem recebido é excepcional", reconhece Mark Kramer, coautor do artigo e sócio da consultoria FSG, sediada em Washington e especializada em ajudar organizações a criarem impacto social em larga escala.
No início do mês, a cruzada de Kramer fez sua parada no Brasil. A consultoria do estrategista acaba de firmar uma parceria com a Coca-Cola Brasil com o objetivo de auxiliar a companhia a identificar novas oportunidades de atuação social com base no conceito. Desde 2009 a multinacional já realiza ações de valor compartilhado por meio de sua plataforma Coletivo, que consiste em criar bases em comunidades carentes, oferecendo treinamento técnico em áreas como empreendedorismo, reciclagem, varejo, logística, artes e extrativismo. Os coletivos da empresa também seguem a cartilha do "empoderamento" de jovens e mulheres de baixa renda, trabalhando temas como autoestima e acesso ao mercado de trabalho.
A parceria da Coca-Cola com a consultoria de Mark Kramer atuará em duas frentes. Uma delas é difundir o conceito da criação de valor compartilhado entre outras companhias brasileiras, ONGs e setores do governo. A primeira iniciativa nesse sentido foi a realização de um evento no Rio de Janeiro, no início do mês, que contou com a presença de mais de 200 lideranças empresariais - incluindo CEOs e altos executivos de grandes empresas, representantes de ONGs que atuam nas áreas social e ambiental e também do governo, além de formadores de opinião, como o apresentador de TV Luciano Huck. No evento, os convidados assistiram a palestras de Mark Kramer e Dane Smith, diretor de negócios da consultoria FSG, e participaram de debate sobre o tema.
Além da realização de conferências sobre valor compartilhado, a outra frente da parceria será criar um modelo de atuação regional com base no conceito, que terá como ponto de partida o Estado do Amazonas. A ideia é, novamente, convocar outras empresas, sociedade civil e poder público local para criar um modelo de desenvolvimento socioeconômico baseado no valor compartilhado. A escolha do Amazonas não foi à toa: há mais de duas décadas o Estado, que conta com uma fábrica de concentrados na Zona Franca de Manaus, tem um papel de destaque nas decisões de negócios e nas ações culturais e ambientais da Coca-Cola Brasil.
"O Amazonas é o ponto de partida para uma estratégia de longo prazo de valor compartilhado. Estamos trabalhando lá há mais de 24 anos e temos negócios importantes, como a fábrica de concentrados e uma usina para produção de açúcar. Ao mesmo tempo, estamos presentes na cultura, com o apoio ao Festival de Parintins, e em projetos socioambientais na bacia do Rio Negro", afirma Xiemar Zarazúa, presidente da Coca-Cola Brasil. "Temos colocado recursos, foco e nosso coração no Amazonas. Agora buscamos avançar nos benefícios que a estratégia de valor compartilhado poderá trazer à região", completa o executivo mexicano, que assumiu a presidência da Cola-Cola Brasil há cinco anos e desde então vem dando destaque a iniciativas da empresa no campo da sustentabilidade.
Mais recentemente, a empresa se debruçou na estruturação de uma cadeia de valor para o açaí produzido no Amazonas. O objetivo era criar condições para ter uma oferta firme da matéria-prima na região, de modo a beneficiar também os extrativistas locais, que passariam a receber mais pela fruta extraída de modo sustentável, reduzindo o impacto sobre a floresta. A saída foi criar o Coletivo Floresta, um projeto de extrativismo sustentável do açaí nos municípios de Manacapuru e Carauari, no interior do Amazonas, que busca levar conhecimento técnico para os extrativistas e pré-beneficiamento da fruta.
O projeto começou com o desenvolvimento de um produto - um néctar de açaí com banana da marca Del Valle, que chegou aos pontos de venda em setembro de 2013. Depois de um trabalho de imersão de oito meses nessas comunidades, a companhia conseguiu estruturar um modelo baseado no valor compartilhado que já beneficia 600 famílias. "Para esse novo produto, criamos uma parceria que envolve mais de 30 instituições, entre ONGs, governo federal e estadual. Treinamos as pessoas em extrativismo, ensinamos as questões técnicas e logísticas e os inserimos na cadeia de valor oferecendo preço justo: dobramos o valor pago ao açaí para eles" explica Zarazúa. "É o projeto da Coca-Cola que melhor representa, na prática, a ideia do valor compartilhado", elogia o estrategista Mark Kramer.
Coletivo é porta de entrada para mercado de trabalho
O distrito de Vila Andrade, bairro vizinho ao Morumbi, zona sul de São Paulo, é uma das regiões paulistanas que mais tem crescido nos últimos dez anos. A população do bairro passou de 73 mil pessoas em 2001 para 127 mil em 2011, um salto de 73%, e um dos motivos foi o recorde recente de lançamentos de empreendimentos imobiliários. Ao mesmo tempo, é o distrito da cidade que mais possui domicílios em favelas: metade da população mora nas 16 favelas do bairro, entre elas Paraisópolis, a maior da capital. Com disparidades sociais evidentes, o local foi escolhido pela Coca-Cola para abrigar um de seus coletivos - plataforma de ação social que utiliza o conceito de valor compartilhado.
A ideia dos coletivos - hoje são 500 bases de atuação, em 150 comunidades em todo o Brasil - é promover inclusão social e oportunidades econômicas nas comunidades de baixa renda, em parceria com instituições locais e seguindo as vocações regionais. Divididos em sete diferentes modelos, eles oferecem capacitação e treinamento técnico em áreas como varejo, empreendedorismo, reciclagem, extrativismo, eventos, logística e artes. Também ajudam seu público alvo, geralmente jovens e mulheres, em temas como resgate da autoestima e acesso ao mercado de trabalho. "O coletivo é uma ferramenta que opera ao longo da nossa cadeia de valor, não é um projeto social isolado. Identificamos demandas sociais que podem ser trabalhadas em conjunto com nossas atividades de negócios", explica Xiemar Zarazúa, presidente da Coca-Cola Brasil.
A estratégia foi concebida em 2008, quando a empresa buscava novas abordagens para chegar ao consumidor das classes CDE. Com base em pesquisas, a empresa chegou à conclusão de que para cada jovem da classe AB, existem nove das classes CDE, e esses jovens em particular enfrentavam questões como a baixa escolaridade e autoestima, além da falta de renda. "Tivemos um grande aprendizado ao conhecer o consumidor desse perfil. Notamos que havia uma empatia com a marca, mas eles tinham sede de outras coisas além de sucos e refrigerantes. Eles têm sede de educação, trabalho, segurança, autoestima", diz Zarazúa.
O coletivo da Vila Andrade, em São Paulo, oferece capacitação na área de varejo desde 2011 e funciona no espaço da Associação Morumbi de Integração Social (Amis), organização ligada à Igreja Batista e parceira no coletivo. Todos os anos, forma um total de 120 alunos, que frequentam as aulas em paralelo às atividades escolares. Entre outros conhecimentos, passam a ter noções de marketing, gestão de pequenos negócios, realizam atividades práticas no comércio do bairro e também aprendem como podem se inserir no mercado de trabalho. "Eles passam a ter uma visão de como funciona o mercado de trabalho e como podem se preparar para as oportunidades que surgirem", afirma Thiago Oliveira, educador do coletivo. Pesquisas do Instituto Coca-Cola apontam que a empregabilidade dos jovens aumenta em 30% após os treinamentos dos coletivos.
É o caso de Henrique Caracciolo, de 16 anos, que acaba de conseguir seu primeiro emprego como aprendiz na Femsa, engarrafadora da Coca-Cola, exatamente um mês após terminar o curso de varejo no coletivo da Vila Andrade. "Até então, não tinha ideia de como era o mundo do trabalho, achava que na minha idade eu só deveria curtir a vida. Mas dá para se divertir e progredir na vida ao mesmo tempo", afirma o adolescente, que sonha em cursar engenharia mecânica e vai usar o salário para ajudar nas despesas da casa e quem sabe, fazer um curso de inglês. Também frequentador do espaço, Matheus Silvestre faz cursos no coletivo desde os 16 anos e hoje, aos 19 anos, trabalha como gerente de área em uma loja do McDonald's. "Por ser da comunidade, eu achava que só teria subempregos. Mas outras oportunidades se abriram para mim", diz.
Veículo: Valor Econômico