Meados de outubro é tradicionalmente um período em que terminou a colheita em boa parte das regiões vinícolas europeias e começam a aparecer as primeiras notícias concretas sobre a qualidade da safra. É bem verdade que uma análise das condições climáticas dos meses que antecederam a vindima já indicava que se poderia esperar ótimos resultados este ano, mas só com os cachos na cantina e a fermentação em andamento é que se pode ter noção precisa.
Diante disso, é real e indisfarçável a alegria que emana dos comentários e a expressão de contentamento dos produtores das principais zonas italianas e francesas, Piemonte e Toscana, e Bordeaux e Borgonha respectivamente. Na Itália, onde passei cerca de dez dias no final de setembro e volto para lá agora - assunto para as próximas colunas -, a colheita de sangiovese estava no final. As previsões meteorológicas continuavam favoráveis até o final e as vinificações em curso prenunciavam belos vinhos. No Piemonte, já na época a nebbiolo apresentava evolução perfeita de maturação, que se estendeu até o fim da semana passada, quando as últimas uvas estavam sendo vindimadas. A barbera, por sua vez, mais precoce, já estava em plena fermentação, prevendo-se resultados excepcionais.
Entusiasmados mesmo estão os franceses. Paul Pontallier, diretor técnico do Château Margaux, normalmente comedido, me dizia ontem que em suas três décadas de vida profissional, e outros anos mais que acompanhou de longe como bordalês que é, nunca havia visto condições semelhantes - clima perfeito em julho, agosto, setembro e outubro. Estava tão eufórico que pegou a mulher e seus dois filhos pequenos, em pleno domingo, dia que ele sagradamente dedica à família, e os levou junto para provar vinhos de algumas cubas que haviam acabado de fermentar. Segundo Pontallier, os 2009 têm ao mesmo tempo a densidade dos 2005 e a suavidade e perfume dos 90. Vale lembrar que o Château Margaux 90 é considerado um vinho que beira a perfeição.
Os tintos de St Emilion e Pomerol este ano também estão deixando seus produtores bem animados. É possível, no entanto, que eles não cheguem ao mesmo patamar dos da margem esquerda, já que, regra geral, a merlot, lá majoritária, atingiu graus alcoólicos elevados, superando os 14 graus, atingindo, por vezes 16 graus. Falam, mesmo assim em grandes vinhos, equilibrados, mas isso, em princípio, vai depender do terroir e de um bom trabalho do enólogo.
Na Borgonha a saga dos anos terminados em 9 continua - são sempre vinhos de altíssima qualidade. Jacques Seysses, do cultuado Domaine Dujac, em tom de deboche me comentou que quem não conseguiu fazer um bom vinho em 2009 é melhor mudar de profissão. Sempre muito rigoroso consigo mesmo, Christophe Roumier, até concorda que o clima ajudou bastante, mas prefere esperar o fim das fermentações para dar um parecer definitivo. O panorama geral, em todo caso, é bem otimista.
Em Portugal, mais especificamente no Douro, a estiagem e as temperaturas elevadas de julho e agosto aceleraram a produção de açúcar, causando certa preocupação no início da colheita. Parte da produção, inclusive, ficou comprometida devido às uvas desidratarem. Ao menos na região do Cima Corgo, nos arredores de Pinhão, os demais índices de maturação se recuperaram a partir da segunda semana, proporcionando vinhos densos e com boa fruta, fazendo lembrar os (bons) 2005. As vinhas velhas, como sempre acontece nestes casos, vão ter grande participação na qualidade obtida.
Outubro também é o mês em que são lançados alguns guias de vinhos importantes, caso do Peñin, na Espanha, e dos italianos Duemilavini, ligado à Associação Italiana de Sommeliers, e o conhecido Gambero Rosso. Esta foi a primeira edição do Gambero após o rompimento com a Slow Food, editora que o concebeu e lhe deu suporte desde seu nascimento, em 1987.
Não causa surpresa essa separação. Já há um bom tempo circulam comentários sobre um gradual desvirtuamento dos princípios que nortearam o guia. Muitos profissionais alertavam que o Gambero estava se deixando levar por aspectos comerciais, algo que, além da questão ética, se chocava com os objetivos mais puristas do movimento Slow Food, focado no aprimoramento do paladar e no desenvolvimento de alimentos orgânicos, com foco em ecologia e biodiversidade. O rompimento se precipitou com a abrupta demissão de um de seus fundadores Stefano Bonilli, orquestrada pelo atual editor e diretor Daniele Cernilli. Um novo guia deverá ser lançado em 2010 considerando, além da análise sensorial, critérios de sustentabilidade ambiental e ética no processo de produção.
Neste último ano o Gambero Rosso passou por uma série de dificuldades econômicas e acusações de falta de imparcialidade na avaliação dos vinhos. A dificuldade financeira foi aplacada por um aporte de €12 milhões, cuja origem permanece misteriosa, mas especula-se que foi feita por agentes ligados ao setor vinícola. Além disso, Cernilli é acusado de nepotismo e parcialidade, uma vez que sua esposa possui uma consultoria de marketing responsável pelo Road Show do Gambero Rosso e ainda tem como clientes vinícolas que são avaliadas pelo guia.
Os números alertam que, no mínimo, houve um abrandamento nas avaliações: em sua edição 2010, 392 vinhos alcançaram a cotação máxima de 3 bicchieri, número que vem subindo ano a ano - 339 em 2009, 305 em 2008, 282 em 2007, e 246 em 2006. Vou começar a prestar mais atenção e comentar possíveis contradições. Pelo sim, pelo não, segue um resumo dos recém premiados.
A exemplo do ano passado, o Piemonte foi a região com maior número de tre bicchieri, 84 (13 a mais em relação a 2009), seguido de Toscana com 60 (+11), Veneto com 34 (+4), Friuli-Venezia-Giulia com 31 (=), Alto Adige com 24 (-2), Sicilia com 18 (+1), Lombardia com 17 (+1), Campania com 16 (=), Marche com 15 (=), Emilia-Romagna com 14 (+5), Abruzzo com 13 (+1), Puglia com 12 (+5), Trentino com 11 (+4), Sardegna com 11 (-1), Umbria com 9 (+1), Liguria com 6 (+4), Valle d´Aosta com 6 (+2), Lazio com 3 (+1), Basilicata com 3 (=), Calabria com 2 (=) e Molise com 1 (=). Além de atribuir os bicchieri, o Gambero Rosso também destaca os melhores do ano em diversas categorias. Veja tabela.
Veículo: Valor Econômico