O Bloco do eu sozinho
Vem aí o maior acordo comercial do mundo: um superbloco formado por Estados Unidos e União Europeia. Solução para fortalecer a economia dos países ricos, o acordo deixa em evidência a falta de estratégia do Brasil para o comércio exterior.
Por Carla JIMENEZ e Denize BACOCCINA
Enquanto os brasileiros aproveitavam o samba no último dia de Carnaval, na terça-feira 12, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, se apresentava ao mundo num ritmo bem diferente. Otimista com os sinais de retomada da economia americana, Obama usou o tradicional discurso sobre o estado da União, feito no Congresso, em Washington, para dar uma prévia do que pode ser um golpe de mestre para o comércio mundial e uma saída para a crise dos países ricos. “Esta noite anuncio que iniciaremos discussões sobre uma Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento com a União Europeia”, disse Obama. “Porque comércio livre e justo através do Atlântico daria sustentação a milhões de empregos americanos.”
No dia seguinte, o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, mostrou empolgação com a nova estratégia da Casa Branca. “O acordo será um verdadeiro motor para nossas economias”, afirmou. O Brasil precisa abrir o olho a essa notícia. As duas potências, que somam 800 milhões de habitantes e um PIB de US$ 31,8 trilhões, vão sentar-se para negociar uma ideia aventada há mais de meio século, na criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – uma resposta dos Estados Unidos, Canadá e europeus ao bloco comunista, durante a Guerra Fria. Naquela época, vislumbrava-se que o passo seguinte ao acordo militar seria a ampliação do comércio.
As culturas econômicas diferentes e a prevalência dos interesses nacionais e regionais, porém, esfriaram as intenções com o passar dos anos. Agora, os aliados têm novamente um inimigo em comum: a recessão da União Europeia, cuja economia teve uma contração de 0,5% no ano passado, e a necessidade premente de recuperar o antigo vigor da economia americana, que já está em crescimento (leia reportagem aqui). Obama e os líderes europeus pretendem se acertar até o fim de 2014. Se tiverem sucesso, em 2015 eles poderão ampliar em € 150 bilhões o fluxo comercial, hoje de quase meio trilhão de euros. A novidade deixa em evidência a falta de estratégia do Brasil no mercado externo.
O País se fechou numa política equivocada, privilegiando a parceria com a problemática Argentina, por exemplo. As barreiras erguidas pela presidenta Cristina Kirchner derrubaram o saldo comercial de US$ 5,8 bilhões a favor do Brasil, em 2011, para menos de US$ 2 bilhões no ano passado. As perspectivas para este ano são ainda piores. Atrelado ao Mercosul, o País tem demonstrado uma ambição limitada de ampliar os horizontes do comércio exterior, algo que não condiz com o status de sétima economia do planeta. A única “ousadia” brasileira em sua política externa nos últimos anos foi liderar a pressão para que a também problemática Venezuela fosse aceita no bloco sul-americano, no ano passado.
Afora os acordos bilaterais com economias pequenas, como Israel, Palestina e Egito, de 2008, o Brasil está paralisado há quatro anos nessa área. “O anúncio do tratado transatlântico nos coloca em situação delicada”, alerta o embaixador Rubens Barbosa, presidente do Conselho de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Poderemos perder vantagens tarifárias com a UE e até aumentar nosso isolamento diante de novos blocos.” As exportações brasileiras, que hoje padecem a falta de uma política de competitividade, podem perder ainda mais espaço. “Por que negociar com a Argentina, em vez de buscar aproximação com a União Europeia e os Estados Unidos?”, indaga Barbosa.
A ambição de integrar zonas de livre comércio está longe de ser privilégio das nações mais ricas. No último dia 27, Colômbia, México, Chile e Peru firmaram a aliança do Pacífico, que prevê tarifa zero para 90% dos produtos comercializados entre eles, a partir de março. Chile e Peru, inclusive, também negociam com os Estados Unidos a adesão ao Acordo Comercial Transpacífico, que reúne nove países dos dois lados do oceano e promete dinamizar o comércio com a Ásia. Os dois países latinos também já fecharam acordos com a China, buscando rotas de saída para um mundo cada vez mais protecionista. O Brasil, porém, está ausente de negociações do gênero, fechado apenas dentro do Mercosul, para onde suas exportações caíram no ano passado.
“Estamos sem iniciativas de peso em comércio exterior há uma década, e os poucos acordos que fizemos têm alcance mínimo”, afirma o embaixador Sérgio Amaral, ex-ministro do Desenvolvimento. A falta de sintonia brasileira com o resto do mundo tem deixado as indústrias do País de fora das cadeias produtivas globais. “Hoje o Brasil atrai investimentos para atender ao mercado interno, principalmente na área de serviços”, diz Barbosa. “Mas para integrar cadeias produtivas precisamos negociar com outros blocos regras que hoje o Brasil não quer aceitar.” Sem uma política de longo prazo para tratar do comércio exterior, o País tende a recuar ao velho status de nação essencialmente agrícola, desperdiçando o potencial de uma indústria diversificada pela falta de visão estratégica.
O novo tratado euroamericano, porém, poderá ser o choque de realidade que o País precisa para tomar posições mais firmes. “Isso pode fazer o Brasil acordar para o mundo”, diz José Augusto de Castro, vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). O governo Dilma, no entanto, não dá sinais de que irá mudar o rumo equivocado trilhado pelo governo Lula, que privilegiou as relações Sul-Sul em detrimento dos ricos parceiros do Hemisfério Norte. Na semana passada, o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, manteve silêncio sobre o novo superbloco. E o Itamaraty, responsável pela negociação de acordos de comércio exterior, diz apenas que está avaliando a situação.
“Temos de esperar os termos do acordo para mapear os possíveis impactos”, diz o ministro das Relações Exteriores Antonio Patriota. “Precisamos saber se o setor de serviços estará incluído no acordo.” Nesse caso, haveria riscos para empresas brasileiras do setor bancário, de engenharia, publicidade e arquitetura. “Com um acordo do gênero, o campo poderia se fechar para as empresas brasileiras”, diz Patriota. Mais do que isso, se as negociações anunciadas por Obama forem bem-sucedidas, os Estados Unidos podem vir a ganhar preferência como exportador de commodities agrícolas para o mercado europeu, o que atingiria diretamente o Brasil.
“A União Europeia é um grande mercado para as commodities brasileiras”, afirma o embaixador Rubens Ricupero, ex-secretário geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). No ano passado, o País exportou US$ 48,8 bilhões para a Europa, dos quais US$ 24,3 bilhões em produtos básicos, principalmente bens agrícolas. Ao todo, o mercado europeu foi destino de 20% das exportações brasileiras – nos anos 1990, esse total era superior a 30%. Ricupero pondera que o anúncio oficial do acordo está longe de ser uma garantia de que europeus e americanos serão capazes de superar suas diferenças. “A Europa vive um problema de competitividade, principalmente dos países ao sul, como Grécia e Itália”, diz.
Há sérias diferenças na área ambiental, nas regras financeiras e até mesmo nas políticas cambiais. Obama precisará do apoio do Congresso para levar o projeto adiante. Ricupero avalia que não se pode subestimar essas barreiras, nem assumir que o novo acordo é uma panaceia para a crise global. “É mais uma sinalização de que a liberalização do comércio é uma alternativa neste momento de crise em que o mundo ficou mais protecionista.” Na semana passada, a chanceler alemã, Angela Merkel, e o primeiro-ministro britânico, David Cameron, manifestaram apoio à criação do superbloco. O especialista em relações internacionais Eric Farnsworth, vice-presidente do Conselho das Américas, de Washington, entende que a ênfase dada pelos líderes ao anúncio do namoro marca uma mudança de postura fundamental.
“Essa negociação levará alguns anos para ganhar a forma final. Os efeitos, porém, podem ser vertiginosos para os dois lados”, afirma. Outros países deverão se beneficiar, incluindo o Brasil, se buscarem um caminho para negociar com as novas potências, afirma. O problema é que o País já perdeu diversas oportunidades de pensar grande nesse assunto. Segundo uma autoridade próxima ao Planalto, o anúncio de Obama foi visto como uma reação do mundo desenvolvido ao crescimento acelerado dos países emergentes – principalmente a China. “É legítimo que economias maduras queiram se proteger”, afirma. Na verdade, é o Brasil que precisa se proteger de si mesmo, e de suas velhas receitas que têm trazido pouco ou nenhum benefício para o setor produtivo.
Veículo: Revista Isto É Dinheiro