O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já marcou data para anunciar seus planos ambiciosos para o uso do real nas transações da América do Sul. Esses planos avançam além da campanha feita por ele para estender aos sócios sul-americanos o mecanismo de comércio em moeda local, já lançado com a Argentina - embora sem muito sucesso até agora, como noticiaram Raquel Landim e Janes Rocha, em reportagem do Valor, na semana passada. Na próxima reunião da Unasul, que agrega os países da região, ainda neste semestre, Lula quer apresentar aos parceiros uma proposta que pode ampliar o uso do real nas relações entre os vizinhos.
O mecanismo ainda não está pronto, e passa por discussões na equipe econômica, onde, jura-se no Palácio do Planalto, já existe concordância do reticente Banco Central. Sem dar detalhes da proposta, os assessores de Lula descrevem uma proposta que se assemelha à linha de swap em dólares aberta pelos EUA ao Brasil e outros países, no ano passado, pela qual os beneficiados por trocar no Federal Reserve suas moedas por dólares, até um limite e por um tempo limitado, que se esgota nesta semana. Mas terá diferenças, ao incorporar mecanismos de compensação de moedas.
Os países sul-americanos serão autorizados a sacar, do BC, uma quantia em reais, que poderão usar para o comércio com o Brasil ou até repassar a outros países no continente (que, por sua vez, poderiam usar a moeda para pagar compromissos no mercado brasileiro). Falta ainda, segundo um graduado assessor de Lula, definir o total que será posto à disposição dos vizinhos. Lula quer que seja uma quantia significativa.
O mecanismo em elaboração difere do sistema de pagamentos em moeda local já adotado com a Argentina porque ele permite o uso do real em outros pagamentos, além de operações comerciais. E permite também aos países beneficiados usar os reais adquiridos para transações com outros países. Além da óbvia vantagem para o Brasil, por permitir a maior circulação da moeda brasileira entre os países do continente, o novo sistema, segundo se argumenta no Planalto, ajudaria aos outros governos da América do Sul a reduzir sua dependência de dólares em transações internacionais na região - em um período de escassez de moeda americana no continente.
O Brasil tem superávits no comércio com todas as nações da América do Sul, à exceção da Bolívia. Os bolivianos tem déficits no comércio com os outros países, e um enorme superávit com o Brasil, graças à venda de gás ao mercado brasileiro. A cessão de dólares aos vizinhos permitira a esses países reduzir seus problemas de balanço de pagamentos em dólar, inclusive na Bolívia, que poderia usar os reais para comprar produtos de outros países andinos, ou da Argentina, por exemplo. Esses são os argumentos que Lula levará à reunião da Unasul, em junho.
Lula conversou sobre o assunto, na semana passada, em Buenos Aires com a presidente da Argentina, Cristina Kirchner. Foi um dos principais assuntos levados por ele para a conversa privada com a presidente. O tema também foi abordado ligeiramente durante a reunião dos ministros com os chefes de Estado.
A ampliação do uso do real é um desdobramento natural da série de iniciativas que vem sendo tomada na relação bilateral, na tentativa de, progressivamente, permitir à Argentina menor dependência do dólar, já que o país, desde a decretação da restruturação unilateral de sua dívida, em 2005, tem acesso muito limitado ao mercado de capitais internacional. O Brasil, na visita, ampliou, de US$ 120 milhões para US$ 1,5 bilhão o valor das operações que podem ser firmadas sob amparo do Convênio de Crédito Recíproco (o CCR, espécie de mecanismo de compensação em moedas locais acoplado a um seguro de exportação). Firmou acordo, ainda, para que compromissos como compra e venda de energia elétrica e pagamentos previdenciários possam ser realizados em moeda local, real ou peso.
Não é a única iniciativa no continente, de redução da dependência em relação ao dólar para transações com vizinhos. Atento aos movimentos brasileiros, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, reuniu seus associados na Alternativa Bolivariana das Américas (Alba), pequenos países centro-americanos e do Caribe, além da Bolívia, e com Equador e Paraguai firmou um acordo para um mecanismo de compensação regional a que denominaram "sucre", embrião, segundo o venezuelano, de uma futura moeda regional.
Como muitos dos anúncios de Chávez, o "sucre" tem muito de intenção e pouco de realidade, por enquanto, já que iniciativas de livre trânsito cambial na Venezuela esbarram no rígido controle de pagamentos internacionais feitos pelo governo. Chávez, no fim de semana, recebeu o ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, e como outros governantes do continente, mostrou interesse no mecanismo de comércio em moeda local entre Brasil e Argentina. A conversa não foi além de perguntas interessadas do venezuelano. Não se sabe como compatibilizar o mecanismo com o controle cambial imposto no país.
A iniciativa brasileira de expandir a circulação do real no continente pode ser interpretada por dois ângulos. Um deles, se adotada a retórica com que o venezuelano Chávez cerca medidas do gênero, pode ser vista como uma medida antiamericana - o que não é - destinada a botar a colherzinha do Brasil na sopa da desconstrução dos Estados Unidos como emissor da moeda de troca mundial.
Outra interpretação, mais do agrado do governo brasileiro, é a de que a crise financeira e de confiança nos mercados mundiais ameaça fortemente as contas externas dos países da região, com quem o Brasil tem uma parcela substancial de seu comércio. Se quiser reduzir as fontes de pressão sobre as políticas comerciais dos parceiros sul-americanos e minimizar seus efeitos sobre as vendas de produtos brasileiros na região, o governo brasileiro tem de buscar mecanismos criativos e menos dependentes do fluxo de dólares para esses países. Lula mandou seus técnicos encontrarem esses mecanismos e conta tê-los em mãos, até junho.
Veículo: Valor Econômico