O que faz um neozelandês mudar para o interior da Bahia? Leite. E o que leva nove neozelandeses a investir R$ 100 milhões na Bahia? Água, sol e pasto farto, condições ideais para produzir leite. E, claro, um gigantesco mercado doméstico de lácteos para ser explorado.
Doze anos depois de fincarem pé no país - dez para estruturação do negócio e dois de gôndola -, os sócios-fundadores da Leitíssimo, marca que se gaba de ter 100% do leite produzido e engarrafado na fazenda, preparam o passo seguinte para consolidar sua participação no mercado brasileiro. Com mais um aporte de R$ 10 milhões, quase seu faturamento anual, a empresa apresentará a partir de 2014 seu novo portfólio de produtos, desta vez com foco na venda de leite desnatado e creme de leite feito a partir da nata descartada.
"Estamos fazendo isso por demanda mesmo. Nossos clientes dizem que adoram o nosso leite integral, mas que não querem passar mais tempo na academia", diz Simon Wallace, referindo-se ao perfil saudável de sua clientela "premium". Mantendo a discrição que tem caracterizado o trabalho dos neozelandeses por aqui, seu sócio David Broad explica mais. "Primeiro temos de provar que dá certo, para depois anunciar. Mas teremos surpresas para os próximos meses". Se você não tinha notado as garrafas brancas PET com uma vaca simpática no rótulo, as chances de isso ocorrer agora vão crescer.
Radicados onde a Bahia encontra Minas e Goiás, eles tampouco estariam apostando no mercado brasileiro se não tivessem trazido de casa o trunfo genético que criou a "kiwicross", um cruzamento de vaca europeia de boa produtividade de leite mas rústica o bastante para suportar o calor do Cerrado.
A raça inusitada e o modo de produção da Nova Zelândia replicado na fazenda Leite Verde, no município baiano de Jaborandi, têm atraído os olhos da concorrência e amantes do produto em geral. Todos querem saber o que está por trás da Leitíssimo, que apesar de jovem já foi catapultada à condição de "queridinha" dos baristas e sorveterias badaladas do Sudeste.
"Temos sempre visitantes por aqui, até de produtor de leite dos Estados Unidos que quer conhecer nosso sistema", diz Broad. Ele sorri quando é questionado se não tem medo de a concorrência roubar os seus segredos. "É fácil olhar o que estamos fazendo. O difícil é fazer".
Não é só a qualidade do leite nem a embalagem bonitinha que chamam a atenção. Mais importante, para os demais produtores, é o fato de a fazenda no oeste da Bahia - uma região tradicionalmente de soja, milho e algodão - produzir hoje mais leite por hectare que nos Estados Unidos (os maiores produtores mundiais) e três vezes mais que na Nova Zelândia (os maiores exportadores de leite). "Nossos amigos não acreditam quando eu falo", diz ele, "porque lá na Nova Zelândia são três vacas por hectare. Aqui nós temos dez".
Broad chegou à Leite Verde há dois anos, no momento crucial em que a Leitíssimo ultrapassou a porteira em direção às gôndolas de Brasília e da Bahia, até hoje seu principal polo de vendas. Convencido por Wallace a entrar no negócio e assumir Jaborandi como CEP oficial, ele cuida da produção à chegada do leite aos supermercados. Assim como os demais sócios, conhece a fundo o mercado de lácteos: trabalhou por quase uma década na Fonterra, a maior cooperativa de laticínios do mundo, na Nova Zelândia. Além dele e Wallace, nascido e criado em fazenda leiteira, Craig Bell, 17 anos de Fonterra, formam o trio que toca o negócio no Brasil. Outros seis neozelandeses e três brasileiros completam a sociedade. "Isso ninguém pode negar. Temos uma equipe de bastante experiência", afirma Broad.
A entrada deles no mercado brasileiro não é totalmente estranha. Embora o leite represente um quarto da pauta de exportações do país, a produção da ilha não tem para onde se expandir. Nos últimos anos cresceram os relatos de produtores locais partindo da Oceania para outros países, em busca de terras para produzir.
Wallace, hoje com 41 anos, chegou ao Brasil em 2001. Entusiasta, foi o desbravador que percorreu vários Estados e visitou "umas 100 propriedades rurais" até chegar a Jaborandi. Em um português pontuado por gírias baianas, ele explica que, além do potencial de mercado para lácteos, a escolha pelo país se deveu a laços comerciais anteriores - seu pai, David, já vendia vacas a produtores brasileiros.
"Escolhemos aqui por causa do microclima da região, de temperaturas mais amenas para os animais, e da água abundante", diz ele, apontando para fotos, mais amareladas que deveriam, dos primeiros anos na fazenda - a escavação do primeiro buraco, as tendas de dormir, as festas juninas improvisadas e a escuridão de 5,5 mil hectares até então não privilegiados pela fiação de energia elétrica.
Nos dez anos de silêncio proposital, que suscitou a curiosidade da vizinhança e da imprensa, Wallace e Bell prepararam o terreno e formaram o rebanho até o anúncio oficial do empreendimento em 2011. O tal "sistema" neozelandês, que eles dizem com orgulho ser a alma do negócio, é uma conjunção de fatores que engloba o manejo correto do pasto, a genética bovina, as relações humanas e os olhos dos donos sempre por perto.
A primeira regra é morar na fazenda, como manda a tradição neozelandesa. "No Brasil, vocês vivem nas cidades e deixam [um capataz] tomando conta da produção. Eu fico na fazenda 240 dias por ano", diz Wallace, que só sai para compras corriqueiras em Mambaí, a cidade de apoio em Goiás, ou para participar das quatro reuniões por ano do conselho da sua fazenda na Nova Zelândia.
Outra característica da produção é o mix de alimentação e animais apropriados. Assim como em seu país, as vacas se alimentam unicamente com pasto e um complemento de milho triturado para garantir a quantidade de proteína necessária ao organismo (o "sorvete" oferecido após as ordenhas).
O rebanho foi formado por inseminação artificial para garantir as qualidades exigidas pelos produtores - vacas holandesas, de alta produtividade, com jersey, que confere a rusticidade que falta aos animais do Norte da Europa. "Não adianta pôr uma Ferrari aqui. Precisamos de um 4x4", diz Wallace, referindo-se à escolha da melhor genética para a região. O sêmen é trazido de touros neozelandeses.
Recentemente, a fazenda adotou a sexagem dos embriões como forma de forçar o nascimento de bezerras. Segundo eles, o retorno tem sido positivo: uma taxa de 87% de nascimento de fêmeas (os machos são sacrificados, seguindo uma prática comum no campo).
Wallace diz que a combinação dessa genética animal e da variedade de pasto tropical, que cresce mais rápido por causa da incidência do sol e da água, ajudam a explicar por que as vacas da Leite Verde produzem 14 mil litros por ano, contra a média de 6 mil litros no resto do país. "Quando meu pai me visitou e viu a velocidade com que o pasto cresce aqui, ele disse ter certeza que a fazenda daria certo".
A comparação é assim: para cada hectare de pasto em Jaborandi são recolhidos 45 mil toneladas de matéria seca (pasto cortado e desidratado) por ano; na Nova Zelândia são 15 mil toneladas por ano. "Mas isso não se traduz necessariamente em mais leite porque o pasto lá é melhor", acrescenta Broad.
Os pivôs de irrigação são outro diferencial. A água, retirada do rio que passa pela propriedade, molha o pasto sempre que preciso. Isso garante pastos verdes o ano inteiro. No oeste da Bahia, trata-se de uma questão de sobrevivência do negócio - a fazenda encerrou na segunda passada 28 dias sem chuvas, e o tempo já está seco de novo.
Aos oito pivôs operando hoje com cerca de 500 vacas cada, a Leite Verde acrescentará mais três até o fim deste ano e pretende chegar a 20 em seis anos. Das ordenhadeiras, o leite segue por caminhão para o laticínio, ali do lado, sofre os choques térmicos de praxe para esterilização e é envasado na hora.
Para quem anda pela fazenda, tudo parece ser cuidadosamente controlado. Broad explica que isso é possível graças à verticalização - até as garrafas e rótulos são feitos dentro da fábrica, que não possui estoques para evitar contaminação. "Mantemos garrafas para 15 minutos, caso a máquina pare".
A gestão descentralizada também ajuda a deixar a máquina mais azeitada - cada pivô tem o seu gerente e, em tese, todos conseguem resolver problemas do dia-a-dia sem ter de chamar por ajuda pelo rádio e esperar por ela.
A boa relação entre funcionários e patrões também é um vetor para o sucesso, dizem os sócios. A começar pelas casas. Distribuídas pelos pivôs - "assim qualquer um chega a pé à sua função", diz Broad -, elas são todas iguais. E amplas. E bonitas. O refeitório, colado à escola, também é compartilhado. E uma quota de 12 garrafas de leite por mês é oferecida de graça aos funcionários, patrões incluídos.
A escola é outro ponto de atração para os visitantes. Ao estilo neozelandês, as crianças compartilham uma única sala de aula, com subgrupos divididos por idade e assessorados por duas professoras, uma baiana e outra voluntária da Nova Zelândia, que pode ser substituída ou optar por ficar após o término de cada período escolar. A sala tem hoje 11 meninas, filhas de neozelandeses e baianas.
Como era de se esperar em grotões do campo brasileiro, há casos de alunas de pais analfabetos que já falam e escrevem em português e inglês fluentes. "Olha o salto [educacional] que está ocorrendo", diz Broad, pai de três Marias.
Dali o pasto já começa e é possível ver ao longe as vacas comendo, ruminando ou dormindo. Segundo Broad, o bem-estar animal é uma preocupação herdada de casa e tem impacto na lactação. As vacas devem estar em boa condição de saúde porque o sêmen fica fragilizado ao ser sexado, diz. "Se não estiver assim, ela não fica prenha".
No fim do dia, os neozelandeses se dizem otimistas, apesar do desafio de crescer sem perder a qualidade. A carta de referência, afinal, é o produto que vai para a garrafa. "Produzimos um ótimo leite, tão bom quanto o da Nova Zelândia", diz Wallace. E ele engata um comentário curioso: as maiores remessas por Sedex de chineses que vivem na Nova Zelândia para as suas famílias na China são de leite. "Eles adoram". Quem sabe isso não ocorra com a Leitíssimo também?
Veículo: Valor Econômico