Ele tem cor e forma de uma lentilha, mas é um feijão. Desconhecido de grande parte dos brasileiros, o feijão guandu pode sair do anonimato com a chegada ao cardápio de grandes chefs de cozinha que provaram e gostaram dessa variedade que começa a ser resgatada no Vale do Paraíba, em São Paulo.
Mais que o apelo de ser um produto "novo" nos restaurantes, o resgate do feijão guandu tem por trás um forte componente social e ambiental. O primeiro lote experimental, de 300 quilos, inaugura a sua participação no "Retratos do Gosto", projeto lançado há um ano pelo chef Alex Atala como tentativa de resgatar produtos do campo que foram esquecidos no tempo - ou preteridos por culturas comercialmente mais rentáveis do agronegócio. E ainda fomentar pequenos produtores, preferencialmente próximos à capital paulista, na esteira de um movimento gourmet global de compra de alimentos frescos e de origem conhecida.
O feijão é o quarto produto do "Retratos", que estreou com uma variedade de miniarroz também do Vale do Paraíba, o cacau Pará-Parazinho produzido na Bahia (originário da Amazônia e hoje raro no país) e uma farinha de milho caipira da região de Lindoia.
Diferentemente dos outros, porém, sua produção tem benefícios extras: o guandu está sendo plantado no sistema agroflorestal, que mistura culturas agrícolas com culturas florestais de valor comercial. Na Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba, onde a experiência está sendo realizada, o guandu é consorciado com mandioca, banana, araruta (tubérculo usado como farinha e espessante), palmito e o guanandi, árvore da Mata Atlântica que tem uma madeira com alta resistência à agua.
"Queremos mostrar que é possível aos outros agricultores voltar às culturas agrícolas plantadas antes da industrialização da região", afirma Patrick Assumpção, dono da fazenda e entusiasta da formação de uma rede de produtores agroflorestais no Vale do Ribeira. "O que falta ainda é informação".
Herdeiro da fazenda centenária - um emblema de Pindamonhangaba por sua importância econômica à cidade nos tempos em que ali havia uma fábrica de papel e celulose, vendida nos anos 80 -, Assumpção chegou ao feijão guandu graças à decisão de diversificar a produção de eucalipto até então predominante na Coruputuba e no Vale como um todo. Após muita pesquisa, apostou na guanandi (Calophyllum brasiliense), que se estendeu dos mangues do Sudeste à serra mineira, e na acácia (Acacia mangium), outra nativa. Hoje, 28 hectares da fazenda estão cobertos pelo guanandi, 50 pela acácia e outros 50 hectares com plantação de eucalipto.
O consórcio com outras plantas teve início há dois anos, no âmbito do programa de pós-graduação do pesquisador Antonio Device, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e funcionário da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA), ligada à Secretaria de Agricultura. Assumpção entrou com terra e disposição. O custeio do plantio é da APTA e as análises de solo e físico-químicas são feitas nas instalações da UFRRJ.
A árvore escolhida foi o guanandi. Assumpção tem lotes com guanandis "solteiros" e "casados" com pão-viola, imbiruçu, aroeira e angico preto e branco, além das variedades agrícolas, sendo a mandioca, o palmito, a araruta e o guandu as mais promissoras. Mais recentemente, introduziu árvores de frutas menos populares, como o umbu. "Estamos testando para ver se são economicamente viáveis aqui", diz o empresário-produtor.
Segundo ele, o ambiente saudável propiciado por essa diversidade, associado ao manejo correto (o espaçamento necessário entre as mudas, o raleio para evitar competição por sol), antecipou o corte do guanandi em dois anos. Assim, ele recebe mais cedo com a venda da madeira, seu ganha-pão, mas usufrui de mais opções comerciais.
"Vi o que o pessoal do Retratos estava fazendo e fui atrás. Eu também tenho resgatado culturas agrícolas", diz. Da ligação telefônica resultou o primeiro embarque de guandu no início de março.
Amostra de guandu produzido no sistema agroflorestal em Pindamonhangaba
"Nos pareceu um produto interessante porque pode mudar a realidade local", diz Bruno Zucato, gestor da Mie Brasil, empresa que desenvolve marcas na área de alimentos e parceira essencial ao "Retratos do Gosto". "Essa iniciativa deve incentivar os produtores vizinhos a investir no sistema agroflorestal e fortalecer a rede".
Nas mãos da Mie, o feijão de Pindamonhangaba ganhará embalagem apropriada, rótulo e logotipo que permitirão a sua entrada nos dois pontos de venda do projeto - o Santa Luzia e a loja do restaurante Lá da Venda, da chef e escritora Heloisa Bacellar, em São Paulo.
Segundo Zucato, a proposta é sempre associar o produto a um chef que tenha ligação com o campo. Preço combinado - acima do praticado no mercado, diz Assumpção -, a condição para manter a parceria é que 25% do lucro líquido das vendas seja direcionado pelos produtores a programas sociais ou de assistência técnica.
Veículo: Valor Econômico