No Círculo Ártico, um "chef" está cultivando verduras, legumes e ervas - batata, tomilho, tomate, pimentão - mais condizentes com uma horta suburbana em zona temperada do que com uma terra de aurora boreal, geleiras e bois-almiscarados.
Alguns caçadores inuit (grupo étnico conhecido como esquimó, termo atualmente rejeitado por seus membros) estão encontrando renas mais gordas do que nunca, graças à intensificação da pastagem nessa tundra congelada, e, para algumas, não é mais preciso caminhar horas para encontrar ervas silvestres.
Bem-vindo à mudança climática da Groenlândia, onde os nativos dizem que verões mais longos e mais quentes permitem prever que o país conseguirá cultivar produtos agrícolas impensáveis anos atrás.
"As coisas estão simplesmente crescendo mais rápido", disse Kim Ernst, o "chef" dinamarquês do Restaurante Roklubben, situado à beira de um lago congelado perto de uma antiga base militar americana da Guerra Fria.
"Todo ano experimentamos coisas novas", disse Ernst, que até conseguiu cultivar um punhado de morangos, servidos a alguns surpresos membros de casa real escandinava. "Vim aqui pela primeira vez em 1999, e ninguém teria sonhado em fazer isso. Mas agora os dias de verão parecem mais quentes e mais compridos."
A temperatura era de 20 graus Celsius negativos em março, mas havia sol e o ar estava parado, dando quase uma sensação de primavera. Ernst mostrou sua estufa e um jardim de inverno ao ar livre onde, dentro de alguns meses, as plantas poderão voltar a brotar.
Centenas de quilômetros ao sul, alguns agricultores produzem feno, e as fazendas de criação de ovelhas aumentaram de tamanho. Alguns supermercados da capital, Nuuk, vendem verduras produzidas localmente durante o verão.
A produção agrícola comercial de peso ainda está engatinhando. Mas o que atesta a mudança é o fato de o governo da Groenlândia ter formado uma comissão este ano para estudar como a mudança climática pode ajudar os agricultores a aumentar a produção agrícola e a substituir os onerosos alimentos importados.
A mudança já está em curso. A produção de batata cultivada comercialmente no sul da Groenlândia alcançou mais de 100 toneladas em 2012, o dobro da safra de 2008. A produção de verduras da região deverá duplicar este ano em relação a 2012, segundo o governo.
Alguns políticos esperam que o aquecimento global permita que o país, cujo território equivale a um quarto do dos EUA, reduza sua dependência da antiga metrópole colonial, a Dinamarca, para obter boa parte de seus alimentos, num momento em que os partidos políticos pressionam pela plena independência.
A Groenlândia, que é autogerida, exceto em questões de defesa e segurança, depende de uma subvenção anual da Dinamarca de cerca de US$ 600 milhões, ou metade do orçamento anual da ilha. Mas o derretimento de suas enormes placas de gelo impulsionou a mineração e a exploração de petróleo, além do interesse pela agricultura.
"Prevejo muito desenvolvimento na criação de ovelhas e na agricultura devido ao aquecimento global", disse o premiê Kuupik Kleist, cujo governo é responsável pela formação da comissão. "Essas atividades podem se tornar um complemento importante da nossa economia."
Os nativos adoram contar a primeira vez em que o viking Erik o Vermelho chegou aqui, no século X, e rotulou a ilha coberta de gelo de "Groenlândia" (em inglês "Greenland", "terra verde") a fim de atrair outras pessoas a fixar-se aqui. Há evidências de que o clima era mais quente naquela época, permitindo que os vikings cultivassem produtos agrícolas por cinco séculos, antes de desaparecerem misteriosamente.
A escala dessa nova produção agrícola é minúscula. Há apenas umas poucas dezenas de fazendas de criação de ovelhas no sul da Groenlândia, onde pode se constatar a maior parte do impacto da mudança climática. O número de vacas pode chegar a menos que cem. Mas com os 57 mil habitantes, principalmente inuit, o número de bocas a alimentar também é pequeno.
"É preciso pôr a questão em perspectiva. Éramos do Alto Ártico e agora somos mais subárticos", disse Kenneth Hoegh, agrônomo e ex-alto assessor do governo. "Mas somos árticos, de qualquer maneira."
O simbolismo é enorme, no entanto, e chama a atenção para um clima mundial em mudança que presenciou uma alta de temperatura no Ártico equivalente a quase o dobro da média mundial - cerca de 0,8° Celsius desde a era pré-industrial. "Há atualmente áreas enormes no sul da Groenlândia em que se podem cultivar plantas", disse Josephine Nymand, cientista do Instituto de Recursos Naturais da Groenlândia em Nuuk. "A batata foi a mais beneficiada. O repolho também tem sido muito bem-sucedido."
Sten Erik Langstrup Pedersen, que administra uma fazenda de produtos orgânicos num fiorde próximo a Nuuk, cultivou batata pela primeira vez em 1976. Agora ele consegue plantar as safras com duas semanas de antecedência em maio e colher com três semanas de atraso em outubro, em comparação a mais de uma década atrás. Ele cultiva 23 tipos de verduras e legumes, comparativamente aos 15 de dez anos atrás, entre os quais feijão, ervilha, ervas e morango. Diz ter vendido morangos para restaurantes de primeira linha de Copenhagen. Mas Pedersen está cético quanto ao grau de penetração dessa prática. "Os groenlandeses são impacientes. Se veem uma foca, querem caçá-la imediatamente. Nunca conseguirão esperar que as verduras cresçam."
Mesmo assim, há potencial. Hoegh estima que a Groenlândia poderá atender metade de suas necessidades de alimentos com produtos agrícolas cultivados no país, que teriam boas condições de competir com produtos importados da Dinamarca, mais caros. Mas a mudança global não traz só benefícios. Embora os verões estejam mais quentes, chove menos. Alguns especialistas dizem que a Groenlândia poderá em breve precisar de obras de irrigação - coisa irônica para um país de gelo e lagos. "Tivemos verões secos nos últimos anos", disse Aqqalooraq Frederiksen, alto assessor agrícola do sul da Groenlândia, que disse que uma primavera tardia, no ano passado, prejudicou a safra de batata.
No Círculo Ártico, uma enchente-relâmpago ocorrida no verão passado, arrancou a única ponte que ligava o restaurante de Ernst ao aeroporto. Ao que se suspeita, o desastre foi provocado pela água resultante do degelo das geleiras - atribuído, por alguns locais daqui, ao clima quente. A destruição ocorreu justamente no meio da temporada de turismo, e o restaurante perdeu milhares de dólares.
O incidente foi um deplorável lembrete de que o aquecimento global trará seus problemas. Mesmo assim, para Pedersen e seu fiorde em Nuuk, o futuro parece bom. "Quanto mais quente, melhor. Para mim", disse Pedersen..
Veículo: Valor Econômico