Brasil terá papel relevante na garantia de alimentos para matar a fome no mundo
A tecnologia intensiva, que já foi incorporada por parcela significativa da agricultura brasileira, terá de chegar à pecuária e também auxiliar na recuperação de áreas degradadas. É esse o modelo com o qual o Brasil conseguirá desempenhar seu papel de celeiro do mundo, prevê o responsável da Syngenta pelo Brasil e América Latina, Antônio Guimarães. "A expectativa é que o País produza, em relação à produção atual, quase metade do aumento da demanda mundial nos próximos dez anos. Se isso não acontecer, haverá um desequilíbrio enorme", afirma o executivo em entrevista ao DCI. A perspectiva é que de 2010 a 2050, a demanda pela agricultura vai dobrar. Os 2,8 bilhões de toneladas produzidos atualmente têm de chegar a 5 bilhões de toneladas em 2050. Guimarães também atribui papel relevante à redução dos gargalos em logística para melhorar a competitividade brasileira no campo.
Como serão crescentes as restrições para a produção de alimentos - menos água disponível, maior proteção dos recursos naturais, legislações mais contundentes e mudanças climáticas -, será cada vez maior a importância da tecnologia, enfatiza Guimarães. "É nesse ambiente de maior dificuldade que teremos de ampliar a produção agrícola, que cresce porque plantamos em mais áreas ou porque aumentamos a produtividade. Ampliar a área será cada vez mais difícil", diz. Por isso, a Syngenta - com sede na Suíça, é uma das maiores indústrias de sementes do mercado global, atua com pesquisa e venda de soluções em sementes e defensivos químicos para usos agrícolas - investe, inclusive no Brasil, em novas tecnologias.
A seguir, a entrevista.
DCI - Qual o cenário para a produção de alimentos nas próximas décadas?
Antônio Guimarães - Os fatores que geram demanda para a agricultura no mundo são: crescimento da população, da economia mundial e os biocombustíveis, a nova forma de dar energia ao planeta. Esses três fatores tendem a crescer constantemente. Temos quase 7 bilhões de pessoas no mundo e para 2050 fala-se em 10 bilhões. Aí já tem uma demanda crescente para a agricultura. Outro fator que caminha em paralelo: o aumento da renda per capita em países emergentes, como a China, a Índia. Mais renda, maior o consumo de alimentos e combustíveis. Tem ainda o aumento dos biocombustíveis de cana-de-açúcar no Brasil, de milho nos Estados Unidos, de palma na Ásia, e assim por diante. A perspectiva é que de 2010 a 2050, a demanda pela agricultura vai dobrar. Os 2,8 bilhões de toneladas produzidos atualmente têm de chegar a 5 bilhões de toneladas.
DCI - Como conseguir isso?
AG - Para produzir 2,8 bilhões de toneladas foram necessários milhares de anos. No ritmo atual, temos 40 anos para dobrar a produção. Mas o que acontecerá se essa produção não dobrar? Como a demanda vem vindo, haverá desequilíbrio, que será resolvido através do preço das commodities agrícolas, que subirão. E isso vai segurar o desenvolvimento e aumentar a fome no mundo. Antes de 2008, quando houve o boom das commodities, tínhamos 600 milhões de pessoas famintas no mundo. Naquele momento, eram 1 bilhão. Mas como dobrar a produção agrícola? Os desafios nas próximas décadas não serão os mesmos enfrentados até agora. A água disponível, sobre a qual crescia a produtividade agrícola, não vai estar disponível nos próximos anos. Hoje, a agricultura usa algo como 80% da água disponível no mundo, até 2050, só terá 60%. Tem que aumentar a produtividade cada vez mais em um ambiente de escassez de água. O segundo grande desafio é o climático, a temperatura média subirá ainda mais nos próximos anos, e, com isso, cai a produtividade. Cresce a necessidade de preservar o meio ambiente, pois não dá para viver em um mundo que não renova os recursos naturais. Os produtos que as indústrias fazem precisam ser cada vez mais sustentáveis. O ambiente regulatório será mais restritivo. É nesse ambiente de maior dificuldade que temos de ampliar a produção agrícola, que cresce por dois motivos: ou porque ampliamos a área plantada ou aumentamos a produtividade. Plantar em mais área vai ser cada vez mais difícil.
DCI - Mesmo com áreas ainda disponíveis no Brasil e as novas fronteiras na África?
AG - O mapa da FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura] indica que as duas grandes regiões no mundo com áreas disponíveis são América Latina e África. A América Latina já tem legislações ambientais bastante restritivas. No Brasil, o Código Florestal completou um ano. Essas regras, que também existem na Colômbia e na Argentina, fazem com que, na América Latina, o avanço se dê em áreas já existentes. É onde surge a grande oportunidade de ampliar a agricultura na América Latina, principalmente no Brasil: as pastagens degradadas. Temos 160 milhões de hectares de pastagens e 70 milhões de hectares plantados. Boa parte desses 160 milhões de hectares com pastagem, com uma média de um animal por hectare, pode ser liberado para a agricultura, se a produtividade aumentar. Essa área já é aberta, não é de floresta, nem de preservação, e legalmente pode ser usada para a agricultura. É esse o modelo de desenvolvimento da agricultura no Brasil nos próximos anos. No caso da pecuária, o confinamento é a última etapa. Antes, tem a pecuária semi-intensiva, intensiva e, por último, o confinamento. A Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] vem trabalhando nisso com um senhor projeto. A Syngenta é sócia da Embrapa, junto com a John Deere, com a Bunge. Este projeto, de integração pastagem, floresta e lavoura, e de recuperação de áreas degradadas, mantendo o equilíbrio ambiental e aumentando o potencial de produção de alimentos, é prioritário para o atual governo.
DCI - A agricultura avança sobre pastagens, quem abre a floresta é a pecuária. Esse projeto evitaria esse avanço da pecuária?
AG - Sim, mas o agricultor tem de usar mais tecnologia. E estamos no momento certo. Com os preços bons das commodities nos últimos anos dando lucratividade aos produtores brasileiros, eles estão capitalizados para darem esse salto. A ideia é evitar que avancem sobre as florestas. Temos uma nova legislação, controles por satélite. Dando tecnologia ao pecuarista, ele produzirá mais animais na mesma área. A solução para a agricultura, na nossa concepção, é solução que vem da tecnologia, tanto para a pecuária quanto para a agricultura. Mais animais na área significa tratar os animais melhor, ter melhores produtos de engorda. Para o produtor, usar tecnologias cada vez melhores é aumentar a produtividade. Nos últimos 40 anos no Brasil, a soja triplicou a produção em termos de tonelada por hectare. No milho, isso chegou a 3,5 vezes. O único cultivo que não cresceu nessa mesma velocidade foi o da cana-de-açúcar, com 1,7 vez. A indústria está investindo em cana-de-açúcar hoje porque vê aí uma oportunidade de agregar tecnologia para continuar crescendo. Com relação ao que já produz hoje, o Brasil vai gerar quase metade do que vai aumentar a demanda mundial. Se o Brasil não produzir, haverá um desequilíbrio mundial enorme. A questão é que a agricultura brasileira não tem a importância que deveria ter.
DCI - O que está faltando?
AG - O Fórum Econômico Mundial, a FAO e outros órgãos internacionais valorizam mais isso do que nós mesmos. Ainda temos um pouco de herança do passado, quando a pecuária era extensiva, avançando sobre áreas. Tudo era muito precário na agricultura, mas evoluímos muito. E o País não se deu conta que a agricultura é uma atividade de tecnologia intensiva. Uma máquina na fazenda às vezes tem mais tecnologia embarcada do que um avião. Tem GPS, tem tudo. As pessoas ainda imaginam que o agricultor é aquele cara com boi, enxadinha. É uma visão correta há 50 anos. A realidade mudou, mas a população - e maioria está nos centros urbanos -, não acompanhou as mudanças. A economia, a balança comercial, tudo reflete o peso da agricultura. Esse avanço, que sustenta o crescimento, precisa continuar.
DCI - O avanço tecnológico na produção de grãos ainda tem de chegar na pecuária?
AG - A pecuária não está, na minha visão, tão adiantada como a produção de grãos, mas vem vindo. Temos de fazer muito também na produção de grãos, ainda temos que fazer muito. O ponto é: poucos setores da economia no mundo têm uma clareza tão grande de demanda constante para os próximos anos como o agronegócio. Na América Latina, estamos entre os setores da indústria que mais investem em pesquisa e desenvolvimento, em relação ao faturamento. Cerca de 8% do nosso faturamento, da indústria como um todo, vão para pesquisa e desenvolvimento no mundo. O número da Syngenta é maior, nós investimentos 9% do faturamento. Só a indústria farmacêutica investe mais porque todo mundo quer viver mais. A indústria automobilística investe 2%. No nosso negócio, precisamos de oito a dez anos para colocar um produto no mercado. Além de desenvolver os produtos, e os ciclos são geralmente de um ano, tem o ambiente regulatório. Tem que aprovar esses produtos em diversos países, o que leva de oito a dez anos em média.
DCI - E o que a Syngenta está fazendo no Brasil em pesquisa e desenvolvimento?
AG - Temos sete centros de pesquisa, desde Aracati, perto de Fortaleza, até o Sul do Brasil, onde atuam mais de 200 pesquisadores. Tem a parte de químicos, de tratamento de doenças na agricultura. Estamos prestes a lançar um produto tão logo consigamos a aprovação do órgão regulatório aqui no Brasil para ferrugem da soja, a pior doença da soja. Esse produto é tão inovador que possui um sistema nunca aplicado, e impulsionará a produtividade da soja. É um blockbuster da indústria que deve ser lançado neste ano, para ser usado na safra do próximo ano.
DCI - No caso da química, ainda trazemos princípios ativos de fora. Vocês têm algo produzido no Brasil?
AG - Não produzimos ingredientes ativos, mas esses insumos do mundo todo vêm para cá e a unidade em Paulínia, em São Paulo, é a maior da Syngenta no mundo todo em termos de faturamento. Nós exportamos para a maior parte dos países da América Latina. Nos negócios agregados, é a maior unidade. Vocês vão encontrar em poucas multinacionais isso, em que o Brasil é a maior operação.
DCI - E a questão da segurança alimentar?
AG - Todos os governos vão acabar dando suporte maior ao desenvolvimento da agricultura porque é a forma de independência para muitos países. Estudos apontam que 60 países no mundo em 2050 serão dependentes de outros países para alimentar sua população. Um país é considerado independente quando não importa mais do que 20% do consumo interno. Quem na América Latina tem essa situação? Dois importam muitos alimentos: a Venezuela e o México. No primeiro, haverá golpe de Estado quando o país deixar de produzir petróleo. Os mexicanos enfrentam um problema imenso de aumentar a produtividade agrícola, algo necessário para apoiar a economia. Já o Brasil e a Argentina são o oposto. A Argentina não importa quase nada e tem superávit comercial na faixa de US$ 10 bilhões a US$ 15 bilhões. O número do Brasil é muito maior, é superior a US$ 30 bilhões, de superávit que a agricultura gera para a economia. O Brasil é exatamente o oposto desses países que a gente fala que são dependentes de alimentos importados, porque é autossuficiente e ainda exporta. Isso é bom e ruim. É bom porque ficamos orgulhosos, gera divisas. É ruim porque se as exportações do agrobusiness forem retiradas da balança comercial, ficaremos surpresos. O déficit de comércio exterior do Brasil seria superior ao que os países da Europa viveram ano passado. Talvez isso até esconda ineficiências em outras áreas da economia. E não se valoriza a agricultura. O que é que sustenta o dólar em R$ 2? A economia não estaria nesse nível de equilíbrio se não fosse a riqueza gerada pelo agronegócio, uma cadeia de empresas atuantes e também uma parte de pastagens, de fertilizantes. Tudo isso está associado. Muitos dos insumos utilizados na agricultura são importados. Os fertilizantes são importados, muitos agroquímicos também. Mas esse é um fator irrelevante diante da riqueza gerada. A questão não se limita a produzir e exportar grãos. No caso do milho, o grão é produzido no Mato Grosso, e País exporta carne de frango, de porco, tudo isso é grão processado. É agregação de valor.
DCI - O Brasil está preparado para ser o celeiro do mundo?
AG - Está, embora não usufrua da importância que isso representa para a economia mundial, porque subestimamos a importância da agricultura para a economia brasileira. Mas o cenário está começando a mudar. Pela primeira vez o presidente da FAO é brasileiro. Pela primeira vez, o presidente da OMC [Organização Mundial do Comércio] é brasileiro. Isso certamente tem a mão dos países emergentes querendo o suporte do Brasil. Mas também falta resolver os gargalos na logística, o pior de todos. Se falharmos nisso, contribuiremos para o mundo andar devagar e isso prejudicará o Brasil, venderemos menos commodities. A Medida Provisória dos Portos destravou os gargalos da área portuária, mas precisamos avançar. Do contrário, os recursos do agricultor, os preços das commodities foram altos nos últimos anos, mas nós não temos a perspectiva de que isso vá continuar.
Veículo: DCI