Executivos da Procter & Gamble (P&G) dizem ter sido um momento notável, a primeira vez que viram um homem fazer sua barba sentado, os pés descalços no chão de um minúsculo barraco na Índia. Ele não tinha eletricidade, água corrente nem espelho.
Os 20 executivos americanos observaram o homem, em 2008, numa das 300 visitas que fizeram a casas em regiões rurais na Índia. O objetivo? Ter ideias que poderiam usar para desenvolver um novo barbeador para os indianos. "Isso, para mim, foi um grande 'ah!", disse Alberto Carvalho, vice-presidente mundial da marca Gillette até novembro de 2012 - hoje ele é presidente da P&G no Brasil. "Nunca tinha visto as pessoas se barbearem assim."
As visitas foram o pontapé inicial do período de 18 meses consumido no desenvolvimento do Gillette Guard, um aparelho de barbear barato projetado para a Índia e outros países emergentes. Lançado há três anos, o Guard rapidamente conquistou participação de mercado e hoje responde por dois em cada três aparelhos de barbear vendidos na Índia.
A história do nascimento do Guard ilustra o malabarismo que as empresas precisam fazer ao criar produtos para mercados emergentes. Não é tão simples quanto colar um rótulo estrangeiro num produto americano.
Para ter êxito nas vendas nos mercados em desenvolvimento, as empresas precisam adaptar os produtos para que sejam relevantes para as pessoas que vivem nesses lugares. E muitas vezes isso significa repensar tudo, da concepção ao custo. Mais empresas terão que considerar esse ato de malabarismo, à medida que se aprofundarem mais em mercados emergentes como Índia, China e Brasil, para compensar o crescimento mais lento em regiões desenvolvidas, como os Estados Unidos.
A P&G dobrou o percentual da receita proveniente de mercados emergentes desde 2000 no total, para cerca de 40%. Ali Dibadj, analista na Bernstein que acompanha a P&G, disse que a história do barbeador Guard, usado por mais de 50 milhões de homens na Índia, serve como roteiro para empresas que querem seduzir mercados emergentes. "[O produto fez] a P&G perceber quanto investimento é necessário para ter sucesso na Índia", disse. "Essa é a arte [exigida pelos] mercados emergentes."
Já de longa data, a Índia é um país atraente para as empresas americanas. O país tem 1,24 bilhão de pessoas. E seu Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 3,2% em 2012, segundo o Banco Mundial, em comparação com 2,2% nos EUA.
Apesar disso, a pobreza generalizada cria problemas para empresas acostumadas a relacionar-se com uma clientela de maior poder aquisitivo. A renda per capita na Índia está em torno de US$ 124 por mês. Nos EUA, são US$ 4,154 mil.
A Gillette vende aparelhos de barbear na Índia há mais de uma década. A empresa tinha 37,3% do mercado em 2007, vendendo seu sofisticado Mach3 por US$ 2,75 e o Vector, uma versão despojada com duas lâminas, por US$ 0,72.
Mas a Gillette queria mais. Para isso, teria de conquistar cerca de 500 milhões de indianos que usavam aparelhos com lâminas de dois gumes, um antigo barbeador em forma de T que não tem uma peça de plástico que proteja a pele da lâmina.
Mas Carvalho, que comandou o esforço da Gillette em elevar a participação de mercado na Índia, não quis apressar-se em projetar um produto. A Gillette já tinha tropeçado uma vez com sua versão inicial do Vector, em 2002. A empresa, com sede em Boston, queria testar o produto entre os consumidores indianos antes de lançá-lo, mas em vez de incorrer em altos gastos com viagens ao exterior, fez com que estudantes indianos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts testassem o barbeador. "Todos voltavam e diziam 'Puxa, esse é muito melhor", lembra Carvalho.
Mas quando o produto foi lançado na Índia, a reação foi diferente. Os executivos ficaram confusos, até que viajaram até lá e viram homens usando um copo de água para fazer a barba. Os estudantes do MIT tinham água corrente. Sem isso, a lâmina ficava entupida. "Esse é outro 'momento em que a ficha cai'", disse Carvalho. "Isso nos ensinou sobre a importância de ir aonde os consumidores estão, não só para conversar com eles, mas para observar o que é crucial."
A P&G adquiriu a Gillette em 2005 e os anos seguintes foram passados integrando as companhias. Em 2008, o foco na Índia voltou a ser prioridade quando Carvalho decidiu levar 20 pessoas para uma estada de três semanas no país. Eles passaram 3 mil horas com mais de 1 mil indianos em suas casas, em lojas e em pequenos grupos de discussão. Observavam a rotina das pessoas durante o dia inteiro, às vezes até tarde da noite. "Nós perguntamos a eles quais eram suas aspirações e por que eles queriam barbear-se, e com que frequência", disse Carvalho.
Eles ficaram sabendo que as famílias muitas vezes vivem em barracos sem eletricidade e compartilham o banheiro com moradores próximos. Por isso, os homens se barbeiam sentados no chão ao lado de uma bacia de água, muitas vezes sem espelho, na escuridão das primeiras horas da manhã. Barbear-se pode levar até meia hora, em comparação com cinco a sete minutos dos americanos. E os homens indianos precisam esforçar-se para não se cortar.
A conclusão: nos EUA, os fabricantes passaram décadas promovendo o marketing centrado em um barbear mais rente, acrescentando mais e mais lâminas aos aparelhos para deixar a pele mais suave. Mas, na Índia, os homens estão mais preocupados em não se cortar. "Trabalhei nessa categoria por 23 anos e não sabia que é assim que eles encaram o produto", disse Eric Liu, diretor de pesquisa e desenvolvimento de aparelhos de barbear da Gillette.
Com esse conhecimento, a equipe da Gillette começou a desenvolver um novo barbeador para o mercado indiano. Em nove meses, a P&G desenvolveu cinco protótipos. Testaram o design do cabo, a qualidade do corte e a facilidade de enxaguar o aparelho.
O barbeador Guard resultante tem apenas uma lâmina, para privilegiar a segurança, em vez do barbear rente, em comparação com as duas a cinco dos aparelhos de barbear americanos. O cabo foi texturizado para proporcionar firmeza ao ser manejado. Há também um buraco na extremidade do cabo, para facilitar pendurar o aparelho e um pequeno pente ao lado da lâmina, já que a barba dos indianos tende a ser mais espessa.
Depois, a empresa teve de descobrir como produzir o aparelho a um preço justo. Reduziu para quatro o número de componentes no barbeador, em comparação com os 25 necessários ao Mach3, de três lâminas, e tornou oca a haste do aparelho, para que ficasse mais leve e mais barata de produzir.
"Recordo-me de discutir alterações nesse produto que valiam um milésimo ou dois milésimos de um centavo", disse Jim Keighley, diretor-associado de engenharia de produto da empresa.
O resultado? O custo de produção do Guard é cerca de um terço do Vector, sua versão anterior. A Gillette vende o Guard por 15 rúpias, ou US$ 0,34, e cada lâmina custa 5 rúpias, ou US$ 0,12 dólar.
A estratégia parece ter funcionado. A P&G diz que, com uma participação de mercado de 9%, o Guard ampliou seu espaço mais rapidamente do que qualquer outra marca da P&G na Índia. E a fatia da Gillette no mercado de aparelhos e lâminas de barbear na Índia cresceu para 49,1%, segundo a Euromonitor. Esse percentual é superior aos 37,3% em 2007.
Veículo: Valor Econômico