Doces, ácidos e até anestesiantes, os produtos da Amazônia estão entrando nas receitas dos restaurantes de outras regiões do país
Bacuri, jambu, tucupi. Se você nunca experimentou nenhuma dessas iguarias amazônicas nem sabe do que se trata – pela ordem: fruta, erva, molho –, é bom aprender, pois pode ser que venha a deparar com elas nos cardápios dos principais restaurantes do país. Dona Brazi (registrada Josefa Antonia Gonçalves de Andrade, índia da etnia baré) que o diga: tida como a melhor cozinheira de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, ela costuma viajar o país ensinando como preparar a tradicional comida do Norte e no mês passado foi uma das principais atrações numa semana gastronômica em São Paulo. Sua receita mais comentada na ocasião foi redução de tucupi, um líquido amarelo à base de mandioca-brava, com saúvas. "Aqui é comum. As pessoas do Sul não estão acostumadas, mas é uma delícia", garante, já de volta ao seu fogão. Tirando as formigas, os produtos que Dona Brazi usa estão mesmo se propagando. "Até algum tempo atrás, ninguém queria pagar para comer comida brasileira. Agora, esses ingredientes são um atrativo, as pessoas vêm por causa deles", diz o chef Alex Atala, de São Paulo, um entusiasta dos sabores nacionais: em seu restaurante, o D.O.M., utiliza as opções já citadas mais priprioca, uma raiz explorada pela indústria cosmética que ele introduziu na gastronomia, na forma de aromatizante, no caramelo do pudim de leite e no recheio do ravióli de limão e banana-ouro. "Os brasileiros passam por um processo de aprendizado gastronômico. Do mesmo jeito que descobriram as diferenças entre tipos de azeite e de café, vão começando a conhecer a Amazônia", afirma Atala. Há doze anos no Brasil e no comando do restaurante Le Pré Catelan, no Rio de Janeiro, o francês Roland Villard conheceu a região, literalmente, há três anos, numa visita a Manaus, e se tornou um de seus grandes divulgadores. No seu chique e caro restô, o menu Viagem Gastronômica à Amazônia inclui brandade do peixe amazônico tucunaré no lugar do bacalhau e sorvete de murici, uma frutinha com gosto e cheiro, segundo ele, idênticos ao do queijo parmesão. "Meus colegas de fora provam o sorvete e não acreditam que não vai queijo. Todos querem saber qual é o segredo", conta Villard. Embora não tenha um menu fixo de delícias do Norte, o dinamarquês Simon Lau, do restaurante Aquavit, em Brasília, também utiliza regularmente os ingredientes da Amazônia e cultiva ele mesmo um pé de mapati, fruto também conhecido como uva-da-amazônia. "Mas é totalmente diferente das uvas que conhecemos. Tem um sabor acentuado de chá-verde", descreve.
Lau tem bons motivos para plantar mapati no seu restaurante: embora o uso de produtos amazônicos venha aumentando sem parar, a dificuldade em consegui-los ainda é muito grande. "A realidade dos produtores é outra. Eles ainda não desenvolveram uma mentalidade de negócio", diz Mara Salles, dona do restaurante Tordesilhas, em São Paulo. Como exemplo, Mara conta que há dois meses deu sorte e levou "só uma semana" para conseguir 10 quilos de farinha ovinha, uma farinha-d’água em forma de bolinhas. "Sabia que ela existia em Uarini, às margens do Rio Negro. Para entrar em contato com quem fazia, tive de ligar para a prefeitura da cidadezinha", relata ela, que a muito custo arranjou um barqueiro para levar o produto até Manaus e despachá-lo pelo correio. "Ele me disse que demoraria dez dias, mas a farinha chegou em oito, toda perfeita. Quase compus um hino ao correio de tanta alegria", brinca Mara, que usa o ingrediente em uma versão de cuscuz. No Tordesilhas, ela serve, ainda, o célebre pato ao tucupi, molho que costuma ser "importado" pronto, em garrafa. Os peixes (além do pirarucu, o tucunaré e o tambaqui) em geral vêm congelados, e também viajam congeladas a polpa de bacuri, murici, mapati e outras frutas.
A paraense Joanna Martins, que assumiu as funções do pai, Paulo, à frente do restaurante Lá em Casa, o mais famoso de Belém, e no fornecimento de produtos do Norte para restaurantes em todo o Brasil, lamenta as dificuldades. "Como 90% dos alimentos precisam ser congelados, o custo do envio aéreo é muito alto. O frete sai mais caro do que o próprio produto", diz. Para o chef Gabriel Broide, do restaurante Dois, de São Paulo, o esforço compensa. "Os espanhóis estão onde estão porque fizeram um excelente trabalho em cima da cozinha basca e catalã. Se quisermos desenvolver uma gastronomia brasileira de verdade, teremos de apresentar ao público esses alimentos, criar demanda e, assim, acabar com os problemas de fornecimento", diz Broide, que no seu restaurante serve gefilte fish, bolinho de peixe da culinária judaica, de pirarucu, acompanhado de folha e pistilo de jambu, erva amazônica que tem o curioso efeito de amortecer a boca. Estranho? Não mais do que as espuminhas do catalão Ferran Adrià.
Veículo: Revista Veja