Uma pesquisa exclusiva mostra a supremacia de empresas regionais em mercados cobiçados, como o Nordeste brasileiro. Mas a disputa com as grandes fica cada dia mais difícil
Assim como em muitas regiões pobres do país, a rotina na periferia de Fortaleza, no Ceará, é marcada pela monotonia -- uma mesmice só. A qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana, é possível observar o mesmo cenário: crianças brincando em ruelas e mulheres sentadas em cadeiras de praia colocadas nas calçadas. Mas em uma quinta-feira no início de julho os moradores do vilarejo Barroso II, um lugar formado por ocupações irregulares e conjuntos habitacionais, vivenciaram algo novo. Como parte de sua política de marketing, a fabricante de fraldas Sapeka estacionou um trio elétrico na praça do bairro. Assim que a música começou a tocar, o que se viu foi a aproximação em massa de centenas de mulheres acompanhadas de crianças arrumadas em suas melhores roupas. Enquanto alguns procuravam espaço para ver de perto as cantoras (uma obscura dupla de adolescentes intitulada As Sapekas), outros se acotovelavam para trocar embalagens de fralda vazias por brindes modestíssimos, como copos e bonecos de plástico. O show do trio elétrico não custou mais que 1 500 reais, dinheiro suficiente para promover a marca entre os moradores do Barroso II. "Só se falava nisso no bairro. Meus filhos passaram a semana pedindo para que eu os trouxesse aqui", dizia Olinda de Lima enquanto suas três crianças se embrenhavam na aglomeração.
É provável que o consumidor do Sudeste, o maior mercado do Brasil, jamais tenha ouvido falar na Sapeka, empresa criada há dez anos em Goiânia por dois jovens que haviam acabado de entrar na faculdade de administração e de engenharia. O embrião do negócio foi uma máquina artesanal de fazer fraldas -- uma das tantas usadas por pequenos empreendedores do país. Mas, nos últimos anos, a Sapeka tem se tornado cada vez mais familiar para os executivos de grandes fabricantes de bens de consumo. A empresa, cujo escritório em Fortaleza foi instalado na sobreloja de um açougue de periferia, fatura 200 milhões de reais por ano e detém a liderança no mercado de fraldas no Norte e no Nordeste, com participação de 34%. Antes quase desprezados pelas grandes corporações, esses mercados, de perfil marcadamente popular, agora são vistos como uma nova fronteira para o crescimento das vendas. A pequena Sapeka hoje é a grande concorrente nessas regiões da multinacional Kimberly-Clark, líder no mercado brasileiro de fraldas. E é justamente o acirramento dessa disputa que joga luzes sobre um grupo de empreendimentos regionais com o perfil da Sapeka, instalados, atuantes e relevantes fora do eixo Rio-São Paulo.
Um levantamento realizado pelo instituto de pesquisa de mercado LatinPanel, com exclusividade para EXAME, quantificou essa presença. Hoje, as marcas locais detêm a liderança regional em quase um terço das 90 principais categorias de produtos de consumo não duráveis do país. Com estrutura de custos menor e estratégias de marketing adaptadas aos regionalismos, essas marcas tornaram-se referência em seus mercados. Juntam-se à Sapeka casos como o salgadinho Mico’s, mais vendido no Centro-Oeste do que o Cheetos, da americana Pepsico, e o iogurte Piá, marca à frente da Paulista, da francesa Danone, no Sul. "Essas empresas entenderam os consumidores de sua região e por isso superaram as marcas líderes nacionais em volume de vendas", diz Ana Claudia Fioratti, diretora-geral da LatinPanel.
Existência de marcas regionais fortes não é exatamente uma condição nova no Brasil. Durante décadas, ícones locais, como o guaraná Jesus, do Maranhão, cresceram no vácuo deixado pelas grandes empresas. O que torna hoje a liderança das marcas locais uma questão incômoda é a importância que as regiões alcançaram nos últimos anos. Dados da Associação Brasileira de Supermercados mostram que a participação do Sudeste no faturamento do setor caiu de 58,5% em 2003 para 52% no ano passado. No mesmo período, todas as demais regiões aumentaram sua fatia. Em 2008, mais de 50 bilhões de reais foram gastos em supermercados fora do Sudeste -- e nenhuma empresa pode desprezar tal quantia. A explicação para esse deslocamento do consumo é conhecida: o aumento do poder de compra das classes populares. O fenômeno aconteceu em todo o território brasileiro, mas foi especialmente representativo no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste do país. Entre 2003 e 2007, quase 5 milhões de pessoas dessas regiões foram alçadas à classe C, a porta de entrada para a classe média. "É exatamente na briga para conquistar esse novo comprador que regionais e multinacionais passaram a bater de frente", diz João Carlos Lazzarini, diretor da consultoria Nielsen.
O preço, sem dúvida, exerce um papel crucial na equação das marcas regionais. Uma pesquisa da Nielsen mostra que 65% delas oferecem preços mais baixos que suas concorrentes nacionais. Trata-se de um fator necessário mas não suficiente para explicar a dominância delas em determinados territórios. Ao longo dos últimos anos, os fabricantes regionais estabeleceram vínculos com pequenos e médios varejistas -- responsáveis pela maior parte das vendas de bens de consumo não duráveis no Brasil. A cooperativa gaúcha de laticínios Piá, que tem 66% de seu faturamento atrelado a pequenos comerciantes, criou uma estrutura de atendimento especial ao varejinho, nos moldes do que as grandes indústrias fazem com as grandes redes. Em uma de suas ações, cerca de 200 promotoras ficam de plantão em vendinhas para incentivar a degustação dos iogurtes da marca. A Piá também atende diretamente todos os clientes, sem a intermediação de distribuidores. "Com isso, conseguimos melhores espaços nas gôndolas", diz Victor Afonso Grins, presidente da cooperativa, que reúne pequenos produtores de leite da Serra Gaúcha e fatura 280 milhões de reais. Por fim, a Piá investe em estratégias de marketing espantosamente simples. Sua campanha mais agressiva consiste em distribuir produtos como bicicletas entre os varejistas -- que, por sua vez, tratam de sorteá-las entre os consumidores dos produtos da marca.
Embora as instalações sejam humildes e as técnicas pouco glamourosas, é um equívoco imaginar que os produtos dessas empresas são necessariamente ruins. O aumento do crédito verificado nos últimos anos e o maior acesso às tecnologias têm elevado os padrões de qualidade dos produtos e das embalagens. Analise o caso da Creme Mel, líder em sorvetes na região Centro-Oeste do país. A companhia nasceu em Goiás, em 1987, quando o ex-motorista de caminhão Antonio dos Santos começou o negócio na garagem de sua casa. No início, ele tinha apenas quatro carrinhos de picolé, um freezer usado e uma receita à base de frutas e leite de gado jersey, que garantiu a fama do produto na região. O início da expansão ocorreu em 1996, com a explosão de vendas de potes de sorvete no Brasil. Foi nesse período que a Creme Mel passou a fornecer sorvete a redes varejistas. Construiu uma fábrica, em Goiânia, e adquiriu oito caminhões refrigerados. Há três anos, a empresa comprou um equipamento -- o túnel de extrusão -- que possibilitou sua entrada em um segmento premium de sorvetes. Santos passou a fabricar o picolé Master -- semelhante ao Magnum, da Unilever, e ao Mega, da Nestlé. "Esse produto reforça a imagem de que a Creme Mel não deixa nada a dever para as multinacionais", diz ele.
Evidentemente, as grandes empresas, líderes nacionais nessas categorias, não ficaram inertes diante do predomínio das regionais. Nos últimos cinco anos, elas têm buscado a simplificação das operações e maior capilaridade de atuação. No início do ano passado, a subsidiária brasileira da Kimberly-Clark, fabricante de produtos de higiene, criou uma unidade de negócios para atender exclusivamente às regiões Norte e Nordeste. A operação funciona, em muitos aspectos, de modo independente do escritório central: tem a própria equipe de finanças, logística e vendas, além de metas de desempenho específicas. A nova estrutura aproximou os executivos da companhia dos varejistas locais. (O diretor da operação Norte e Nordeste da Kimberly-Clark, Pedro Coletta, foi entrevistado por EXAME enquanto visitava uma vendinha em Manaus.) A atitude dos vendedores da empresa também mudou. "Antes, ninguém se preocupava com uma venda de 100 000 reais, por exemplo. Os vendedores queriam cuidar das contas de 1 milhão", diz Coletta. "Agora, toda venda é importante." Graças à nova estratégia, as vendas da Kimberly-Clark cresceram 20% no Nordeste no ano passado e a empresa decidiu estender a abordagem regional para o resto do país. No final de 2008 foram criadas duas novas unidades para atender mais especificamente ao Centro-Oeste e ao Sul.
Todo o esforço das empresas para crescer regionalmente pode ser medido por seus investimentos recentes. Apenas os estados da Bahia, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte receberam quase 1 bilhão de reais em aportes de grandes fabricantes de bens de consumo desde 2000. A Nestlé inaugurou uma fábrica em Feira de Santana, na Bahia, há dois anos. A Danone construiu dois novos centros de distribuição no Nordeste no ano passado e vai reabrir, em 2010, sua fábrica em Maracanaú, na região de Fortaleza. Há cerca de quatro anos, a Pepsico, líder nacional em salgadinhos, abriu uma fábrica próxima a Recife. Desde então, conseguiu dobrar o número de pontos de venda atendidos na Região Nordeste. Para quase todas elas, porém, os custos continuam a ser um desafio. As fraldas Turma da Mônica, da Kimberly-Clark, chegam a custar o dobro da concorrente local Sapeka. Como se encaixar no bolso do consumidor emergente sem ferir a imagem da marca? Ou as margens da empresa? Os executivos da Kimberly ainda não chegaram a uma resposta, mas estudam, entre outras opções, a criação de um produto local -- saída cada vez mais adotada pelas multinacionais de bens de consumo.
Tudo isso leva a crer que, se no passado as companhias regionais cresceram no vácuo deixado pelas multinacionais, o mesmo cenário não deve se repetir daqui para a frente. Agora, as empresas locais terão de defender sua participação diante da crescente agressividade das gigantes, e com uma desvantagem: as grandes marcas são objeto de desejo da base da pirâmide. Além do ataque dentro de casa, as regionais enfrentam o desafio de crescer para fora de seus domínios. Essa tarefa emperra em dois principais problemas. O primeiro é a falta de capital para fazer frente aos investimentos dos concorrentes de grande porte. O segundo é a falta de profissionalização da gestão. "Muitas empresas só conseguem a vantagem do preço baixo, por exemplo, porque trabalham de modo informal. Mas, quanto maior a companhia, mais difícil é manter essa situação", diz Douglas Woods, diretor da consultoria Boston Consulting Group. A informalidade -- eufemismo para a ilegalidade que é o não pagamento de tributos -- é uma realidade em muitos mercados. Assim como é real a preferência do consumidor popular por produtos mais baratos. As grandes empresas sabem disso. E, além de gritar contra os eventuais concorrentes desleais, terão de continuar a se adaptar às idiossincrasias do mercado no Brasil profundo.
Veículo: Revista Exame