Paul Bulcke se tornou diretor-presidente da Nestlé SA em abril de 2008, o ápice de uma carreira na maior fabricante de alimentos do mundo que começou em 1979 como aprendiz de administração. Esses 18 meses foram duros. Bulcke, um executivo belga de 55 anos que dirigiu a enorme unidade Américas antes do cargo atual, assumiu o comando justamente quando consumidores no mundo todo estavam fechando a carteira.
Por causa disso, a Nestlé se viu no meio de uma batalha cada vez mais intensa contra produtos mais baratos de marca própria dos supermercados.
Depois de vários anos de sólido crescimento, as vendas da Nestlé frearam este ano, com desempenho inferior ao de rivais como Unilever e Danone SA. Ao mesmo tempo, a oferta de US$ 17 bilhões que a americana Kraft Foods fez pela fabricante britânica de chocolates Cadbury PLC jogou um holofote indesejado sobre os negócios de doces da Nestlé, há muito uma de suas partes mais fracas. A oferta da Kraft levou muitos a pensar se a Nestlé faria uma oferta rival pela Cadbury para reforçar seus negócios de chocolate.
No mês passado, Bulcke traçou um panorama ligeiramente melhor para as tendências de vendas da Nestlé, anunciando um crescimento orgânico de 3,6% no terceiro trimestre, ante 3,5% do primeiro semestre, mas ainda longe da meta de longo prazo da companhia, que é de 5% a 6%.
Numa entrevista ao Wall Street Journal na sede da Nestlé na Suíça, Bulcke refletiu sobre os desafios de se administrar em meio à crise econômica, entre goles de Nescafé e chocolates Cailler. Trechos:
WSJ: O que deu mais certo para a Nestlé na administração da crise?
Paul Bulcke: É uma questão de manter o curso. Dissemos ao nosso pessoal que nosso (plano de negócios de) longo prazo se mantinha, e que ele era bom. Em tempos bons e tempos ruins, ele tem tração, tem quilometragem.
Pegamos (nossa estratégia de inventar produtos de baixo custo para o mundo emergente) e demos a ela um impulso muito maior. O consumidor emergente é um dos maiores aceleradores de crescimento que identificamos.
WSJ: O que o sr. teria feito diferente no último ano?
Bulcke: Uma boa parte da concorrência tentou (cortar preços) muito mais do que queríamos fazer. Às vezes, durante o ano, deveríamos ter reagido mais rápido a essas medidas, não só com preço, mas identificando melhor o perigo das reduções. A gente disse: 'essas promoções vão ser temporárias'. Às vezes deveríamos ter tido mais intensidade em nossa reação.
WSJ: A Nestlé tinha uma meta de crescimento de receita de 5% a 6%, mas seu crescimento orgânico este ano está em apenas 3,6%. A meta continua válida?
Bulcke: Essa é nossa direção de longo prazo. Estamos mantendo. No terceiro trimestre, nossos volumes cresceram a um nível maior do que no trimestre anterior, então temos impulso no crescimento de volume. E isso num momento em que também temos enxugado portfólios e cortado (itens de fraco desempenho). Isso teve impacto negativo sobre o crescimento, mas é como tirar o mato do nosso jardim para que o restante possa florir melhor. É bom para o crescimento no futuro.
WSJ: Qual a sua visão do crescimento global?
Bulcke: Não acho que a crise vá acabar assim sem mais nem menos. Vai haver alguma rebarba. Eu vejo uma recuperação que vai ganhar um pouco de tração, mas vai levar um tempo para ganhar impulso. Os EUA são uma área que é sempre forte quando se recupera, mas não vai ser um grande pulo. Vai ser lenta e firme. A Europa demorou mais para entrar na crise mas vai demorar mais para sair. Nunca vai ser no mesmo nível que você poderia esperar nos EUA. Um pouco de crescimento em volumes está voltando.
WSJ: Seus aumentos de preço este ano foram só metade do nível de 2008. O sr. acha que o poder de preço vai voltar?
Bulcke: Este mercado está tão volátil no lado do custo. Depende muito da categoria. Veja o cacau: os aumentos de preço que temos visto são estruturais. Não é uma questão de ver o preço voltar a cair. O leite também está subindo. Projetamos 2% mais ou menos (de aumento de preço de matérias-primas) para este ano.
Em relação ao preço dos nossos produtos, também vamos seguir uma tendência de 2%. E eu espero que a inflação não volte.
WSJ: Os investidores muitas vezes se queixam de que a Nestlé não resiste a fazer grandes e caras aquisições. Logo vocês terão a chance de vender o resto de sua farmacêutica Alcon Inc. por até 30 bilhões de francos suíços, ou cerca de US$ 29 bilhões. O sr. pode garantir aos investidores que a Nestlé não vai fazer uma grande aquisição?
Bulcke: A situação da Alcon é algo com que só se pode lidar em janeiro e vai levar mais uns seis ou sete meses para recebermos o dinheiro. Sempre vai haver quem diga: 'Você pagou demais'. Mas somos uma companhia de longo prazo. Não vamos fazer (...) nada prejudicial. Seremos responsáveis.
WSJ: O sr. vai fazer uma oferta pela Cadbury?
Bulcke: Não tenho comentários sobre isso.
WSJ: Depois de anos de forte crescimento, o mercado de água engarrafada está sob enorme pressão agora por causa de preocupações ambientais e concorrência. A água engarrafada é agora um segmento de baixo crescimento?
Bulcke: Tem sido uma tormenta, tanto por causa das preocupações ambientais quanto da crise. A água é uma categoria que nos deu muitos anos de alegria. E de repente tudo mudou. Isso é que dói. A questão ambiental será equacionada novamente. Temos a garrafa mais leve agora. Na cadeia de valor, estamos trabalhando duro para ganhar eficiências.
WSJ: Qual o pior conselho que o sr. já recebeu sobre como lidar com um enfraquecimento econômico?
Bulcke: A pior coisa seria começar a reagir a pressões de curto prazo e ameaçar sua visão de longo prazo. Isso é vender sua alma porque afrouxa sua inspiração de longo prazo e a disciplina da sua organização. É um perigo.
WSJ: Como o sr. motiva as pessoas?
Bulcke: Você fala sobre as coisas. Apesar de pensar que esta é uma companhia enorme, temos várias maneiras de conectar. Quando você está sempre falando sobre essas mesmas coisas, sente a tração e sente a companhia se mexer bem rapidamente naquela direção..
Veículo: Valor Econômico